quarta-feira, 6 de setembro de 2017

IT: A COISA


Em um universo onde as crianças não podem contar com adultos ausentes enquanto lidam com valentões e a descoberta dos valores de amor e companheirismo, um grupo de colegas de escola, montados em suas bicicletas e armados de lanternas e walkie-talkies, tem de enfrentar um monstro que, no fundo, é quase tão assustador quanto esse processo de amadurecimento. Isso, claro, ao som da melhor seleta de canções pop da época. Essa embalagem de filmes de fantasia e terror da Hollywood dos anos 1980 gerou mesmo obras atemporais como Conta Comigo, Os Goonies, Gremlins, Garotos Perdidos, e E.T. - O Extra Terrestre, e hoje surge como uma estética cultuada e emulada à risca em projetos como Super 8 e Stranger Things. It: A Coisa não é diferente, e apesar de atado ao gênero de horror, é um longa muito mais preocupado com a elaboração de uma atmosfera sombria e ameaçadora que abrace seus carismáticos e jovens protagonistas, do que em causar sustos pontuais.  E se esses existem, é por mera convenção, como se o projeto os utilizasse por obrigatoriedade, já que, de outra forma, desenvolver o hepteto de personagens principais parece ser seu objetivo primário - e um que é alcançado de forma encantadora.



Porém, não se iluda com termos como “encantadora”, “carismáticos”, “amor” e “companheirismo”, esses filmes “anos 1980” funcionam e permanecem até hoje no imaginário popular por tratarem de forma eficiente temas universais da passagem da infância à adolescência, como as primeiras paixões, o firmamento das noções de amizade e amor (“Eu nunca tive amigos como os que tive aos 12 anos”, já diria Gordie em Conta Comigo) e, claro, o primeiro contato com a morte e a ideia de finitude. Portanto, falamos de produções que compreendem como é necessário que os desafios enfrentados pelos pequenos heróis destes filmes representem perigos letais - e aí, por exemplo, reside o grande erro de Steven Spielberg na remasterização de E.T., quando apagou digitalmente as armas das mãos dos agentes que perseguem as crianças, reinserindo as espingardas e pistolas na versão de aniversário mais tarde. E It entende que é este horror que deve contrapor aos seus protagonistas, que apesar da puerilidade que trazem consigo, habitam um mundo onde um menino de poucos anos de idade surge já nos primeiros minutos de projeção com o braço decepado e se arrastando por sua vida na chuva.


Aliás, uma vez que as consequências brutais dessas aventuras simbolizam a dureza do próprio cotidiano em que, uma vez adultos, somos inseridos, é admirável notar quando um projeto consegue administrar esse nível de grafismo e violência sem perder o carisma ou se entregar ao puro e vazio exercício niilista. Sombrio, gore e arrepiante, mas jamais desesperançoso, It alcança esse equilíbrio nos fazendo temer e, mais do que isso, torcer pelos sete heróis mirins. Isso graças à espantosa coesão do elenco jovem e ao delicado desenvolvimento individual que cada um de seus personagens ganha - fruto do trabalho dos roteiristas Chase Palmer, Gary Dauberman e, principalmente, não tenho dúvidas, Cary Fukunaga, que já havia demonstrado dominar essa dinâmica na direção de True Detective. Nenhuma das crianças chega ao final das mais de duas horas de filme como uma figura dispensável ou insossa, e todos se firmam com traços próprios e distintos, sem nunca soarem como caricaturas. Se Ben é o típico rato de biblioteca, isso é porque se sente isolado e amedrontado pelos valentões da escola, o que se reflete na fala baixa e calma que Jeremy Ray Taylor emprega. Se Beverly é confiante e independente, logo descobrimos que isso são características que desenvolveu para fugir de sua realidade em casa, onde Sophia Lillis vive com doçura o momento em que a menina, ao ler uma mensagem de carinho, reconhece ali um de seus primeiros contatos com o amor de verdade, diferente da obsessão distorcida de seu pai. E embora Jaeden Lieberher encarne o protagonista com o misto apropriado de curiosidade e dor, é mesmo o Richie de Finn Wolfhard (de Stranger Things) e o Eddie de Jack Dylan Grazer que se destacam com suas divertidas manias. Richie, em especial, através das piadas que recorrentemente envolvem enaltecer o tamanho do próprio pênis, encanta ainda mais por representar perfeitamente essa ânsia infantil de dar vazão às autodescobertas por meio de um humor imbecil e, claro, apropriado a sua idade.


Retomando o calhamaço de Stephen King depois da irregular versão para TV de 1990, a trama acompanha o grupo sendo assombrado por uma entidade mística que parece se alimentar de crianças. Assumindo com frequência a forma do palhaço Pennywise (Bill Skarsgard), o monstro explora os principais medos dos pequenos, assombrando-os até que estejam vulneráveis o suficiente para que dê o bote. Depois de vários desaparecimentos estranhos na pequena cidade de Derry, incluindo aí o do irmão mais novo de Bill (Lieberher), o garoto se junta a Ben, Beverly, Richie, Eddie, Mike (Chosen Jacobs) e Stanley (Wyatt Oleff) para encontrar e destruir a Coisa. Acertado desde a concepção, que decide limar a fase adulta dos personagens e se focar apenas na sua infância, o filme evita tanto os erros da minissérie quanto os do livro, que ou entregavam o destino dos protagonistas ao navegar entre seu passado e presente, ou perdiam sensivelmente em carisma ao acompanhar as desinteressantes versões maduras deles. Dirigida pelo ainda novato Andy Muschietti, depois de comandar o eficiente Mama (e igualmente o curta em que é baseado, Mamá), a narrativa, aliás, faz bem em se livrar da presença dos mais velhos em geral naquele universo, tornando-o mais ameaçador. Os raros momentos em que pais, policiais e demais “responsáveis” surgem em tela, servem apenas para marcar o quão caricatos parecem às crianças - a controladora mãe de Eddie, por exemplo, é caracterizada sob uma maquiagem pesada e artificial, além das roupas extravagantes, enquanto o pai de Beverly parece estar sempre usando as roupas do serviço, coberto de suor e sujeira.


De outra forma, It parece fazer um esforço para ser um filme de terror, demonstrando que, talvez, não o quisesse tanto ser, e que a ideia de Muschietti fosse, ao invés disso, criar uma fantasia de horror - sub-gênero que já descrevia bem melhor seu Mama. Pois os sustos aqui são pouco inventivos e caem constantemente em maneirismos do gênero, falhando quase sempre naquilo que deveria fazê-los eficientes: surpreender. O que já não pode ser dito dos momentos que circundam esses sobressaltos (na maior parte causados por aqueles aborrecidos e batidos estouros da trilha), quando o cineasta se empenha em criar a antecipação de algo ruim - e é especialmente bacana notar sua coerência visual ao investir em quadros inclinados (dutch angles) sempre que Pennywise está mexendo com a realidade de suas vítimas - ao ponto em que, em certo instante, associa a inclinação literalmente a um quadro na parede. Aliás, é preciso apontar que o palhaço em si e suas trucagens sofrem um pouco com os excessos de CGI, que acabam entregando a natureza digital de algumas criações, tirando o espectador da imersão e anulando a tensão que poderiam representar. Apesar disso, Bill Skarsgard se empenha em conferir ao vilão alguma personalidade, e auxiliado por seus grandes olhos claros e estrábicos consegue ao menos torná-lo ameaçador com facilidade, ainda que fique longe da performance marcante de Tim Curry.


It: A Coisa, entretanto, funciona justamente porque se pauta numa função histórica do gênero de horror: servir de metáfora. O medo é um sentimento tão primário e universal, que é quase impossível não associarmos aos seus porta-vozes, sejam eles os zumbis, os fantasmas e, aqui, a Coisa, configurações reais do mundo de cá da tela. Assim, por mais literal que seja, é óbvio que Pennywise também assume uma simbologia abstrata para os temores daquelas crianças. Representando não só um adversário sobrenatural que devem enfrentar, mas o próprio ato de crescer e lidar com os obstáculos nesse processo - a mãe controladora, o pai abusivo, a insegurança sexual, a culpa, etc. O longa, aliás, poderia ser resumido pelo momento que traz o grupo principal dando as mãos ensaguentadas uns aos outros, formando um círculo. É, portanto, como tantas dessas obras oitentistas, sobre amizade e amadurecimento, apenas trazendo para a tela um tanto a mais de sangue.




  

Um comentário:

  1. Amei o filme! É impossível não torcer por eles quando as situações terríveis acontecem ou quando os antagonistas humanos tentam fazer algo contra os jovens. O gênero de terror nunca foi um dos meus preferidos, porém devo reconhecer que It A Coisa, foi uma surpresa pra mim, já que apesar dos seus dilemas é uma historia de horror que segue a nova escola, utilizando elementos clássicos. Com protagonistas sólidos e um roteiro diferente. Depois de vê-la você ficara com algo de medo, poderão sentir que alguém os segue ou que algo vai aparecer.

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