quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

O MESTRE




     Durante toda a duração de O Mestre, em momento algum é dito que o filme se trata sobre a criação da Cientologia, uma religião controversa criada no início da década de 1950 pelo escritor L. Ron Hubbard. Porém, não é preciso ler muito sobre o culto para ver que o diretor e roteirista Paul Thomas Anderson claramente busca contar as origens desta instituição, mesmo que para isso tenha mudado alguns nomes e introduzido os dogmas mais latentes da seita de forma sutil em sua trama. E ainda que a força do longa resida na relação de seus protagonistas e nas performances de seus intérpretes, a capacidade de Anderson de expor sua posição em relação ao tema de forma clara, porém, sutil, é o que embasa e dá um plano de fundo muito bem construído para O Mestre, tornando-o mais um projeto bem sucedido do diretor.



     Enfrentando uma rotina tediosa após retornar como marinheiro veterano de guerra, Freddie Quell (Joaquin Phoenix) se entrega a todo o tipo de vício para compensar o seu deslocamento social. Até que um dia, bêbado, sobe à bordo de um pequeno navio comandado por Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman) e descobre que o local funciona como base de uma pequena organização chamada A Causa, uma filosofia que tem como mentor o próprio comandante, chamado pelos seus seguidores de o Mestre. Aos poucos sendo conquistado pelos dogmas d'a Causa, Freddie passa a ser o objeto de estudo mais cativante do Mestre, com quem estabelece uma relação conflituosa devido ao espírito ambíguo do marinheiro, que se por um lado se mostra fervoroso e um seguidor cego, por outro não consegue se divorciar de seus sentimentos anti-institucionalistas alimentados por anos servindo na guerra.


     Este parágrafo, admito, será um pouco técnico. Mas por favor, com um pouco de paciência, prometo chegar ao ponto que quero estabelecer. Pesquisando sobre a Cientologia, descobri alguns fatos interessantes sobre a religião: Foi criada e fundada por Lafayette Ronald Hubbard em 1952 com a publicação do livro Dianética: A Moderna Ciência da Saúde. Dianética quer dizer literalmente "O que a alma faz ao corpo através da mente". Prega que o que chamamos de alma chama-se na verdade Thetan, e que ele é a nossa forma perfeita, o corpo é apenas um invólucro descartável que acabou por se tornar uma prisão para a consciência do Thetan. Ensina seus seguidores a libertarem-se desta prisão e a terem acesso a memórias de sua vida passada em outros corpos. Entre algumas curiosidades de suas práticas estão os dogmas que ditam que: O parto deve se dar em silêncio e sem comemoração para não traumatizar o bebê, a perseguição e destruição de inimigos e críticos da seita deve ser incentivada, e também que nenhum tipo de doação deve ser recusada por seus seguidores.


     Agora, no filme, a Causa é fundada pelo escritor Lancaster Dodd em 1952. A seita prega que o homem é inconsciente de suas vidas passadas, e que as sessões com o Mestre ajudarão no processo de "despertar" deste sono e tomar ciência de toda a sua existência. Dodd não aceita críticas aos dogmas que impõem, estourando em fúria sempre que questionado. Freddie jamais hesita em punir fisicamente qualquer um que se oponha ou se mostre contrário a Causa. E se tudo isso não bastasse para certificar que O Mestre é sem dúvidas um filme sobre a criação da Cientologia, Paul Thomas Anderson ainda inclui um elemento divertidamente escondido em sua trama sobre o tal "parto silencioso" pregado pelos seguidores da religião, apresentando como estando grávida a esposa de Dodd, Peggy (Amy Adams), no inicio do longa, só para já bem ao final mostrá-la sem nenhum indício da gravidez, tornando assim, dentro da trama, o nascimento do filho caçula dos Dodd, um acontecimento silencioso e sutil, sem exaltações ou comemorações.


     Enxergar essas nuances no roteiro e na direção de Anderson é um deleite que só é completo quando se somado as performances de seu elenco principal. E se o próprio diretor já surge um pouco diferente na condução de suas imagens (seus fãs notarão a falta de longos planos sequências com steadycam), é Joaquin Phoenix que surge irreconhecível na pele de Freddie Quell. Grosseiro, repulsivo e violento, o ator consegue adotar diversos aspectos físicos ao personagem que remetem ao seu passado na marinha, basta notar como sua postura encurvada e movimentos dos braços largos e abertos, são compatíveis com a de um soldado entrincheirado tendo como única companhia um fuzil para segurar. Perceba também como suas pálpebras parecem sempre caídas como que acostumadas a encarar o sol forte em mar aberto, e como tal sequela o obriga a inclinar a cabeça para trás para poder enxergar melhor, já que abrir mais os olhos parece ir contra os seus instintos, e por fim, note como Freddie fala com o canto da boca enquanto mantém o outro mais fechado, como se acostumado a falar enquanto segura um cigarro entre os dentes. Todas essas características constroem assim, o protagonista de forma exemplar, para que este possa figurar cenas de um espetáculo performático inomináveis, como aquela em que o marinheiro é entrevistado pela primeira vez por Dodd, onde Anderson mantém seus indivíduos em closes fechadíssimos, já salientando a natureza íntima da relação que está se formando ali, ou aquela em que preso em uma cela como um animal raivoso, Freddie destrói os poucos objetos que encontra no diminuto espaço.


     Já Philip Seymour Hoffman, encarna Dodd como um ser calmo, polido e cheio de um ar de superioridade (repare como ele trata Freddie como a um cachorro lhe delegando comandos como "pare", "sente" e "fica") que atrai e ao mesmo tempo repulsa os sentimentos em relação a sua figura. Sempre positivista, o tal Mestre se mostra um ser repleto de angústias e incertezas por baixo da carapaça sorridente que desfila entre seus fiéis seguidores. Uma mudança sutil que Hoffman incorpora ao personagem com um contraste entre o enérgico Dodd, de fala rápida e certeira quando em público, com aquele agressivo e seco que encarna quando na presença de outras pessoas mais intimas como o próprio Freddie. Porém, Hoffman acerta ao construí-lo como um personagem egoísta e voltado aos seus próprios interesses, que quando precisa convencer uma destas pessoas mais próximas, não hesita em usar de sua máscara compreensiva e positivista para capturá-las com seu carisma. Assim, em uma cena de jantar com a mulher e os filhos, Dodd mantém-se educado e bem humorado enquanto sua família discorda de uma importante decisão sua, ao mesmo passo em que de forma mais assustadora canta uma canção para Freddie já ao final do longa, a fim de fazê-lo mudar de ideia sobre deixar a Causa, enquanto estampa um sorriso no rosto que, caso não soubéssemos se tratar de uma imensa falsidade, poderia até ser divertido, mas que após duas horas e meia de duração de filme já sabemos possuir intenções egoístas e manipuladoras. E neste quesito, a Peggy de Amy Adams não consegue seguir o marido em suas encenações, mostrando-se cem por cento honesta com os seu sentimentos, sendo eles de afeto e atenção, ou de raiva e rancor, coisa que a atriz incorpora a Peggy sem nunca abusar de exercícios corporais, empregando toda a intensidade da personagem em seus grandes e expressivos olhos.


     Nadar, nadar e nadar para morrer na praia. A jornada de Freddie dentro da Causa e seu aprendizado é ilustrado por Anderson em constantes planos do rastro deixado por um navio na superfície do mar, que assim como ensina a seita de Dodd, é infinito como nossos espíritos, e saber olhar para trás e reconhecer o nosso "rastro" em sua superfície é essencial para que tomemos ciência de toda a nossa existência. E se por esses planos se poderia constatar que o diretor enxerga, no final das contas, a tal religião de um ponto de vista positivo, basta ver que assim como ele abre seu longa com um destes takes da água do mar revolta, Anderson o termina com um de Freddie deitado na praia ao lado de uma escultura feita de areia de uma mulher idealizada pelo protagonista. Um ídolo falso e mentiroso, que mesmo representando uma figura tomada pela perfeição imaginativa do personagem, não é nada mais do que uma projeção do mesmo em um montinho de areia. E sua total dependência desta mesma figura acaba remetendo ao Mestre de Hoffman, que em certo momento afirma que nenhum ser humano é capaz de viver sem um guia, um senhor, um mestre. E já divorciado do seu relacionamento com Dodd, é curioso a crítica que o diretor/ roteirista faz a este ao mostrar Freddie compensando sua perda com um pouco de areia, que acaba sendo o suficiente para supri-lo de uma figura idealizada, esta antes representada pelo Mestre.


     Assim, baseado em cenas de embates verborrágicos magistrais, como aquele entre um cético e Dodd, que possuindo os argumentos mais frágeis é enfocado por Anderson sentado e de costas para seu oponente, este em pé e impassível, O Mestre não conclui-se como a melhor obra do diretor, mas mantém o padrão de um realizador que até então não apresentou um só filme mediano que seja em sua carreira. 

NOTA: 9/10




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