Durante toda a duração
de O Mestre, em momento
algum é dito que o filme se trata sobre a criação da Cientologia, uma religião
controversa criada no início da década de 1950 pelo escritor L. Ron Hubbard.
Porém, não é preciso ler muito sobre o culto para ver que o diretor e
roteirista Paul Thomas Anderson claramente busca contar as origens desta
instituição, mesmo que para isso tenha mudado alguns nomes e introduzido os
dogmas mais latentes da seita de forma sutil em sua trama. E ainda que a força
do longa resida na relação de seus protagonistas e nas performances de seus
intérpretes, a capacidade de Anderson de expor sua posição em relação ao
tema de forma clara, porém, sutil, é o que embasa e dá um plano de fundo muito
bem construído para O Mestre,
tornando-o mais um projeto bem sucedido do diretor.
Enfrentando uma rotina
tediosa após retornar como marinheiro veterano de guerra, Freddie Quell
(Joaquin Phoenix) se entrega a todo o tipo de vício para compensar o seu
deslocamento social. Até que um dia, bêbado, sobe à bordo de um pequeno navio
comandado por Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman) e descobre que o local
funciona como base de uma pequena organização chamada A Causa, uma filosofia
que tem como mentor o próprio comandante, chamado pelos seus seguidores de o
Mestre. Aos poucos sendo conquistado pelos dogmas d'a Causa, Freddie passa a
ser o objeto de estudo mais cativante do Mestre, com quem estabelece uma
relação conflituosa devido ao espírito ambíguo do marinheiro, que se por um
lado se mostra fervoroso e um seguidor cego, por outro não consegue se
divorciar de seus sentimentos anti-institucionalistas alimentados por anos
servindo na guerra.
Este parágrafo,
admito, será um pouco técnico. Mas por favor, com um pouco de paciência,
prometo chegar ao ponto que quero estabelecer. Pesquisando sobre a Cientologia,
descobri alguns fatos interessantes sobre a religião: Foi criada e fundada por
Lafayette Ronald Hubbard em 1952 com a publicação do livro Dianética: A Moderna Ciência da
Saúde. Dianética quer dizer literalmente "O que a alma faz ao corpo
através da mente". Prega que o que chamamos de alma chama-se na
verdade Thetan, e que ele é a nossa forma perfeita, o corpo é
apenas um invólucro descartável que acabou por se tornar uma prisão para a
consciência do Thetan.
Ensina seus seguidores a libertarem-se desta prisão e a terem acesso a memórias
de sua vida passada em outros corpos. Entre algumas curiosidades de suas
práticas estão os dogmas que ditam que: O parto deve se dar em silêncio e sem
comemoração para não traumatizar o bebê, a perseguição e destruição de inimigos
e críticos da seita deve ser incentivada, e também que nenhum tipo de doação
deve ser recusada por seus seguidores.
Agora, no filme, a
Causa é fundada pelo escritor Lancaster Dodd em 1952. A seita prega que o homem
é inconsciente de suas vidas passadas, e que as sessões com o Mestre ajudarão
no processo de "despertar" deste sono e tomar ciência de toda a sua
existência. Dodd não aceita críticas aos dogmas que impõem, estourando em fúria
sempre que questionado. Freddie jamais hesita em punir fisicamente qualquer um
que se oponha ou se mostre contrário a Causa. E se tudo isso não bastasse para
certificar que O Mestre é sem dúvidas um filme sobre a criação
da Cientologia, Paul Thomas Anderson ainda inclui um elemento divertidamente
escondido em sua trama sobre o tal "parto silencioso" pregado pelos
seguidores da religião, apresentando como estando grávida a esposa de Dodd, Peggy
(Amy Adams), no inicio do longa, só para já bem ao final mostrá-la sem nenhum
indício da gravidez, tornando assim, dentro da trama, o nascimento do filho
caçula dos Dodd, um acontecimento silencioso e sutil, sem exaltações ou
comemorações.
Enxergar essas nuances
no roteiro e na direção de Anderson é um deleite que só é completo quando se
somado as performances de seu elenco principal. E se o próprio diretor já surge
um pouco diferente na condução de suas imagens (seus fãs notarão a falta de
longos planos sequências com steadycam), é Joaquin Phoenix que surge
irreconhecível na pele de Freddie Quell. Grosseiro, repulsivo e violento, o
ator consegue adotar diversos aspectos físicos ao personagem que remetem ao seu
passado na marinha, basta notar como sua postura encurvada e movimentos dos
braços largos e abertos, são compatíveis com a de um soldado entrincheirado
tendo como única companhia um fuzil para segurar. Perceba também como suas
pálpebras parecem sempre caídas como que acostumadas a encarar o sol forte em
mar aberto, e como tal sequela o obriga a inclinar a cabeça para trás para
poder enxergar melhor, já que abrir mais os olhos parece ir contra os seus
instintos, e por fim, note como Freddie fala com o canto da boca enquanto
mantém o outro mais fechado, como se acostumado a falar enquanto segura um
cigarro entre os dentes. Todas essas características constroem assim, o
protagonista de forma exemplar, para que este possa figurar cenas de um
espetáculo performático inomináveis, como aquela em que o marinheiro é
entrevistado pela primeira vez por Dodd, onde Anderson mantém seus indivíduos
em closes fechadíssimos, já salientando a natureza íntima da relação que está
se formando ali, ou aquela em que preso em uma cela como um animal raivoso,
Freddie destrói os poucos objetos que encontra no diminuto espaço.
Já Philip Seymour
Hoffman, encarna Dodd como um ser calmo, polido e cheio de um ar de
superioridade (repare como ele trata Freddie como a um cachorro lhe delegando
comandos como "pare", "sente" e "fica") que atrai
e ao mesmo tempo repulsa os sentimentos em relação a sua figura. Sempre positivista,
o tal Mestre se mostra um ser repleto de angústias e incertezas por baixo da
carapaça sorridente que desfila entre seus fiéis seguidores. Uma mudança sutil
que Hoffman incorpora ao personagem com um contraste entre o enérgico Dodd, de
fala rápida e certeira quando em público, com aquele agressivo e seco que
encarna quando na presença de outras pessoas mais intimas como o próprio
Freddie. Porém, Hoffman acerta ao construí-lo como um personagem egoísta e
voltado aos seus próprios interesses, que quando precisa convencer uma destas
pessoas mais próximas, não hesita em usar de sua máscara compreensiva e
positivista para capturá-las com seu carisma. Assim, em uma cena de jantar com
a mulher e os filhos, Dodd mantém-se educado e bem humorado enquanto sua
família discorda de uma importante decisão sua, ao mesmo passo em que de forma
mais assustadora canta uma canção para Freddie já ao final do longa, a fim de
fazê-lo mudar de ideia sobre deixar a Causa, enquanto estampa um sorriso no
rosto que, caso não soubéssemos se tratar de uma imensa falsidade,
poderia até ser divertido, mas que após duas horas e meia de duração de filme
já sabemos possuir intenções egoístas e manipuladoras. E neste quesito, a Peggy
de Amy Adams não consegue seguir o marido em suas encenações, mostrando-se cem
por cento honesta com os seu sentimentos, sendo eles de afeto e atenção, ou de
raiva e rancor, coisa que a atriz incorpora a Peggy sem nunca abusar de
exercícios corporais, empregando toda a intensidade da personagem em seus grandes
e expressivos olhos.
Nadar, nadar e nadar
para morrer na praia. A jornada de Freddie dentro da Causa e seu aprendizado é
ilustrado por Anderson em constantes planos do rastro deixado por um navio na
superfície do mar, que assim como ensina a seita de Dodd, é infinito como
nossos espíritos, e saber olhar para trás e reconhecer o nosso
"rastro" em sua superfície é essencial para que tomemos ciência de
toda a nossa existência. E se por esses planos se poderia constatar que o
diretor enxerga, no final das contas, a tal religião de um ponto de vista
positivo, basta ver que assim como ele abre seu longa com um destes takes da
água do mar revolta, Anderson o termina com um de Freddie deitado na praia ao
lado de uma escultura feita de areia de uma mulher idealizada pelo
protagonista. Um ídolo falso e mentiroso, que mesmo representando uma figura
tomada pela perfeição imaginativa do personagem, não é nada mais do que uma
projeção do mesmo em um montinho de areia. E sua total dependência desta mesma
figura acaba remetendo ao Mestre de Hoffman, que em certo momento afirma que
nenhum ser humano é capaz de viver sem um guia, um senhor, um mestre. E já
divorciado do seu relacionamento com Dodd, é curioso a crítica que o diretor/
roteirista faz a este ao mostrar Freddie compensando sua perda com um pouco de
areia, que acaba sendo o suficiente para supri-lo de uma figura idealizada, esta
antes representada pelo Mestre.
Assim, baseado em
cenas de embates verborrágicos magistrais, como aquele entre um cético e Dodd,
que possuindo os argumentos mais frágeis é enfocado por Anderson sentado e de
costas para seu oponente, este em pé e impassível, O
Mestre não conclui-se como a
melhor obra do diretor, mas mantém o padrão de um realizador que até então não
apresentou um só filme mediano que seja em sua carreira.
NOTA: 9/10
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