Não resistindo em começar seu filme com uma cena artificial onde põe dois
soldados citando para o próprio Abraham Lincoln o seu discurso mais famoso
(aquele proferido em Gettysburg no ano de 1863), Steven Spielberg já estabelece
desde seus primeiros minutos de filme os dois recursos no qual vai basear sua
narrativa nas próximas duas horas e vinte, o diálogo puramente explicativo e a
performance de Daniel Day-Lewis. E apesar de excessivamente ufanista, da visão
unilateral do abolicionismo e de certa pieguice desnecessária (esta cada vez
mais presente na obra do diretor), Lincoln termina como um bom filme que acima
de tudo, nos faz temer e torcer por seu protagonista, deixando-nos tristes por
suas derrotas e vibrantes em suas vitórias, o que por si só, é um sentimento
que já traz um vislumbre daquele velho Spielberg que não consegue tornar nem o
mais rabugento de seus personagens (aqui representado por Tommy Lee Jones) em
um ser menos carismático.
No auge da Guerra Civil norte americana, o presidente Abraham Lincoln
(Daniel Day-Lewis), o primeiro presidente eleito do Partido Republicano, une
esforços para tentar aprovar uma Proclamação de Emancipação que dará liberdade
à todos os escravos no país, acabando assim, com o combate em si. Isso em uma
trama que acompanha os últimos meses do famoso e retórico presidente tanto em
sua carreira política quanto pessoal, ao lado da amargurada esposa Mary (Sally
Field) e do filho Robert (Joseph Gordon-Levitt).
Os negros nos Estados Unidos não foram libertados por um monte de
políticos caucasianos em um tribunal como este longa parece sugerir. Muito
antes da Guerra Civil estourar, escravos fugidos do Sul já se abrigavam nas
emancipadas e abolicionistas terras do Norte, e o mais importante, eles lutaram
ao lado de seus colegas caucasianos, sendo hoje em dia contabilizados em média 35 mil afrodescendentes mortos em combate nesta época, isso ganhando
metade do soldo oferecido aos outros soldados. E não digo que Spielberg esqueça
deste fato, aliás, o diretor faz questão de colocar um soldado negro reclamando
com o próprio Lincoln sobre sua situação no campo de batalha. Porém, se o esforço
existe, ele é o mínimo suficiente para que o diretor conduza o resto de sua
trama com a consciência limpa, não se importando em representar dali pra frente, o tal povo, como
passivo a todas as decisões tomadas por políticos Republicanos e Democratas. E
mesmo quando acerta, ao inserir a empregada negra dos Lincoln sentada no tribunal
para assistir as parlamentações, trazendo assim uma representante das pessoas
cuja liberdade é discutida a poucos metros de distância, o realizador resolve
mais tarde extrapolar o conceito e colocar uma grande quantidade de negros para
assistir a decisão final. Acontece que com a quantidade, vem a passividade, e
encarar que aquela turma de afrodescendentes está ali apenas para amolecer os
corações alheios do tribunal, é admitir que eles não são nada diferentes de
cachorrinhos pidões implorando por um passeio para seus donos. E assim, mesmo
que sem querer, Spielberg faz parecer que foi o bom coração dos caucasianos que
deu liberdade ao povo negro oprimido.
Porém, se por este lado o diretor parece não entender a questão que tem
em mãos, por outro, ele investe no que sabe fazer muito bem, e claro, acaba
sendo bem sucedido. Pois o Abraham Lincoln de Daniel Day-Lewis dirigido por
Steven Spielberg é um personagem carismático, carinhoso, sábio e muito calmo.
Na verdade, é tanto o esforço que Day-Lewis faz para representar esta última
característica do presidente que, quando o vemos irritar-se, sabemos que o grau
de gravidade da situação é alto graças a este termômetro.
Não errando naquilo que se tornou especialista em fazer, o diretor apresenta
Lincoln já em contato com os soldados traumatizados pela Guerra, ouvindo suas
histórias e compartilhando algumas próprias com eles, só para alguns minutos
depois mostrá-lo, após um dia cansativo de trabalho, levando o filho
carinhosamente do chão para a cama. E a relação pai e filhos em Lincoln é algo que mesmo ocupando um tempo
desnecessário na trama, o cineasta não se abstém de mostrar, marcando mais uma
de suas obras com este que é um de seus temas mais recorrentes.
Em contra partida, o mesmo Spielberg não consegue evitar um certo
ufanismo em seu Lincoln, que mesmo sendo compreensível (Afinal, ele é
o presidente dos Estados Unidos), chega a certos extremos dramáticos que embora
consigam atingir o impacto necessário em seu espectador, também alcançam um
certo nível de repulsa pelas afirmações ditas, como aquela em que o personagem
se levanta e profere um alto e orgulhoso "Eu sou o presidente dos Estados
Unidos, investido de imenso poder!". Assim, o diretor também cria um
clima apelativo, não se poupando de acompanhar o trágico fim de Lincoln e sua
repercussão entre os entes queridos do personagem, encerrando seu longa com
mais um dos discursos do presidente, implorando por lágrimas de seus
espectador. E admito que em certo ponto, é triste ver o corpo do presidente já
falecido sobre uma cama, principalmente depois de todo o esforço que direção e
ator fazem para conquistar o coração de seu público com aquela figura, mas o
que seria melhor? Sair do cinema com um bom sentimento mesmo sabendo o que o
futuro reservaria para o presidente? Ou como aconteceu, sair com o pesar da
perda do personagem mostrada em cores num claro apelo desnecessário de
Spielberg?
Agora, Lincoln pode parecer um filme muito pior para o espectador que não
se mantiver preso a cada linha de diálogo proferida, já que são inúmeras as
discussões políticas (e em termos políticos) dentro do longa, e um apanhado
apenas destas sequências dentro da trama com certeza teria uma duração de mais
de uma hora e meia. Assim, qualquer falta de atenção pode desencadear um
desentendimento do filme, principalmente para um espectador desacostumado ou
para quem é desconhecido o sistema de votação e política norte americano. E
neste caso, mais da metade do filme se perde, já que mesmo tendo uma recriação
de época incrível, um elenco cativante e uma trama interessante, é inegável que Lincoln se baseie principalmente nestas longas
cenas de diálogo puramente político.
Cenas estas que, não fossem as interpretações de Daniel Day-Lewis e Tommy
Lee Jones, correriam o grave risco de se tornarem maçantes. Emprestando sua
persona rabugenta (e eu detesto ter de usar o termo "emprestar", mas
aqui ele cabe perfeitamente) para o personagem de Thaddeus Stevens, Jones acaba
soando como um alívio cômico que, sim, é extremamente funcional e cativa. E
mesmo em um momento onde o personagem corrompe seus ideias, o ator faz questão
de mostrá-lo abatido pela atitude, fazendo de Stevens um político mau humorado,
porém, carismático. Já Sally Field se mostra adequada como a amargurada Mary
Lincoln, quase caindo na caricatura em certos momentos de ultrarromantismo de
Spielberg, como aquele em que durante uma discussão do casal protagonista, o
diretor pontua cada grito com uma trovoada de uma forte tempestade, que
rapidamente cessa com o fim da briga.
Mas é Daniel Day-Lewis quem, obviamente, leva o filme nas costas.
Empregando uma voz velha e cansada ao seu Lincoln, o ator investe em um andar
vagaroso, uma pose encurvada e um olhar sempre exausto, que é preciosamente
auxiliado por uma maquiagem incrivelmente convincente. O presidente, na pele de
Day-Lewis é um homem bom e incorruptível, e mesmo que as várias histórias que o
personagem conta durante a duração do longa possam começar a soar cansativas
(como um dos personagens aponta em determinado momento "Não, eu não vou
escutar mais uma de suas histórias"), é prazeroso ver o divertimento que
ator emprega a Lincoln neste momentos, como se uma faceirice infantil
o possuísse pela simples oportunidade de reunir alguns amigos e lhes contar uma
de suas aventuras. E me surpreende, que em certa cena, Spielberg dê ao
personagem a chance de retirar esta áurea de perfeição estabelecida durante
quase todo o filme, quando o presidente admite para sua empregada, em suma, que
não entende e nunca entenderá o sofrimento do seu povo e pouco sabe sobre os
motivos que os tornam iguais, que no fim das contas, sua luta não é por eles, e
sim, pelo que é certo no geral.
E mesmo assim, ao fim do filme, Lincoln fica na cabeça como a melhor
parte do longa, o que é no mínimo considerável em um filme que leva o seu nome.
E mesmo que John Williams não crie nenhum tema marcante para embalar a jornada
do presidente (o compositor se mostra anormalmente "quieto" aqui), e
que o diretor faça questão de deixar seu espectador sair com um gosto amargo na
boca, Lincoln, é ainda um filme de personagem onde este é criado e
executado com sucesso e, portanto, mesmo considerando os vários tropeços de sua
narrativa, também um longa bem sucedido... Mas aguardo ainda o dia em que
Spielberg voltará a ser, enfim, Spielberg.
PS- O diretor
provavelmente levará o Oscar de direção este ano. Baseio-me nisso por três
motivos: 1) Spielberg não é premiado há mais de uma década e ele é um dos
queridinhos da academia, já tendo sido indicado mais de uma vez neste meio
tempo. 2) O filme encaixa-se no perfil que a premiação adora reconhecer,
biografia histórica bonitinha. 3) Os concorrentes não tem a menor chance de serem
reconhecidos, com a exceção, talvez, de Michael Haneke.
ele é um filme político, mas tratando-se de uma história real é bem interessante. é um filme social que discute as relações de dominação. tratando-se de um filme de um "herói em prol dos oprimidos" é bem melhor que lista de schindler, bem mais humano e introspectivo. mas é ainda um filme careta, como (desculpa, yuri) qualquer um do Spielberg
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