quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

OS MISERÁVEIS



     Literalmente emergindo com sua câmera do mar para uma tomada aérea megalomaníaca que, só é cortada após quase chocar-se com o nariz de Hugh Jackman, o diretor Tom Hooper já demonstra, desde seu primeiro take, a visão ultrarromântica que adotará neste Os Miseráveis. Onde cada plano faz questão de nos lembrar a jornada "épica" que está sendo percorrida por seus personagens, ainda que a trama, assim como a obra original de Victor Hugo, calcada em um universo realista e miserável (com o perdão do trocadilho) de uma França do início do Século XIX, faça o papel de equilibrar o tom junto aos arroubos ostensivos de Hooper. E chega a ser divertido pensar que mesmo nas mãos de um diretor imprudente e de uma montagem falha, que parece se perder em esquizofrenias rítmicas nos momentos de ápice dramático, o longa consiga sobreviver como uma experiência empolgante, tocante e carismática.



     Seguindo os passos do texto de Hugo, ao dividir sua trama claramente em segmentos focados em um personagem, o filme acompanha primeiramente Jean Valjean (Hugh Jackman), sua libertação do trabalho forçado ao qual serviu por dezenove anos, acusado de roubar um pão, e sua posterior rixa com o obsessivo chefe da guarda Javert (Russell Crowe). Decidido a ajudar a prostituta Fantine (Anne Hathaway), Valjean promete a adoentada mulher que tomará conta de sua filha, Cosette (Isabelle Allen/Amanda Seyfried), com quem é obrigado a fugir da justiça. Até que um jovem revolucionário chamado Marius (Eddie Redmayne), apaixona-se por Cosette levando Valjean a interferir pelo garoto durante a sangrenta insurreição de 1832 em Paris.


     Imaginem o seguinte enquadramento de câmera: Personagem qualquer no canto da imagem, seja direito ou esquerdo, visto do peito pra cima... E todo o resto da tela (cerca de 60% do quadro) mostrando um fundo desfocado. O que isso poderia dizer ao espectador? Que aquele personagem está talvez afastado socialmente do meio em que vive? Talvez o desfocado queira mostrar que a natureza do ambiente no qual o indivíduo se encontra, lhe é desconhecida, ou os dois quem sabe? Infelizmente, nenhuma destas justificativas pode ser encontrada nos personagens de Os Miseráveis, que mesmo assim, acabam enquadrados desta forma por Tom Hooper durante quase todo o filme. É quase como se o diretor estivesse mais interessado em criar wallpapers do que, de fato, contar uma história, e para ter certeza, basta notar a felicidade infantil que ele demonstra ao constantemente fazer sua câmera passear por entre personagens e cenários digitais, ainda que estes movimentos, amplos e possibilitados apenas por uma tonelada de efeitos digitais, não façam nada mais do que gritar para o espectador "Hey! Olha! Tem um diretor por trás deste filme! Notaram?!", como uma criança que acaba de ganhar um brinquedo fabuloso e ainda não sabe de que quer brincar com ele.


     E embora arrisque a vida de seu filme por maneirismos estéticos egocêntricos, Hooper consegue ao menos conduzir a trama de maneira concisa, se destacando aqui e ali com certos planos que, por assumirem o tom romântico escolhido pelo diretor, são bem sucedidos e coesos, como aquele que enfoca a morte de um revoltoso, cujo corpo cai envolto em um pano vermelho para fora de uma janela, ou outro no qual ambienta a triste canção (e todas elas não o são?) de Éponine (Samantha Barks) sob uma chuva melancólica. E o momento em que apresenta Cosette, com um plano que remete diretamente a famosa ilustração da obra original, onde a garota vestida com trapos varre um chão imundo com uma vassoura de palha, merece a citação tanto quanto aquele em que, finalmente de maneira acertada, Hooper enquadra Anne Hathaway para que esta interprete a canção I dreamed a dream em um longo plano sem cortes que acompanha toda a performance da atriz.


     Ainda que este plano já faça valer todos os prêmios que vem recebendo e provavelmente receberá (cof cof... Oscar), Anne Hathaway faz de seus poucos minutos em tela como Fantine, marcantes. Dotada de uma voz delicada, a atriz transforma sua personagem em uma mulher frágil e desamparada, o que somado aos motivos maternais pelos quais Fantine se submete aos horrores de vender seu corpo (e algumas partes dele), gera principalmente pena e compaixão em qualquer espectador, sendo ela a grande responsável pela força da catarse final do longa. E se o talento e a articulação marcam performances como esta e a de Hugh Jackman, tornando-os personagens imediatamente carismáticos, Russell Crowe acerta errando ao interpretar Javert como um personagem unidimensional, cujo objetivo de vida parece ser prender o fugitivo 24601. E neste sentido, a falta de talento do ator para o canto, cujas notas parecem manter sempre o mesmo tom, acabam favorecendo a composição do Chefe da Guarda, que reflete em sua cantoria a linha de pensamento dura e inflexível de Javert.


     Já Helena Bonham Carter e Sacha Baron Cohen surgem adequadamente caricatos como o alívio cômico representado pelo casal Thénardier, embora não façam muito mais do que repetir papéis idênticos que representaram em outro musical, Sweeney Todd. E é curioso citar Tim Burton aqui, já que a arte e figurinos deste Os Miseráveis parece muito ter se inspirado na visão expressionista pela qual o excêntrico cineasta é conhecido por adotar. Veja a sede dos revoltosos em Paris com seus ângulos forçados e estrutura precária, ou mesmo as barricadas formadas por pilhas de móveis amontoados em posições vertiginosas e impossíveis.     Figuras que se adaptam organicamente a uma visão já deturpada de um mundo romantizado ao extremo.


     Uma arte muito bem feita que às vezes acaba desperdiçada por uma montagem capenga feita pela dupla Chris Dickens e Melanie Oliver, que são incapazes de reconhecer e diferenciar um momento de tensão que exige uma montagem mais frenética, de outro mais solene que implora por um plano mais demorado, às vezes até jogando fora os raros lapsos de lucidez de Hooper, que em certo momento cria um belíssimo e adequado plano de tom onírico onde as dezenas de móveis jogados fora pelas janelas de uma rua, caem em câmera lenta em meio a bandeiras e revolucionários, só para que ganhe a duração de um segundo ou menos em tela, sendo seguido de outros takes muito menos interessantes. Assim, a dupla de montadores também faz o suicídio de certo personagem parecer totalmente anticlimático ao mostrá-lo de todos os ângulos filmados pelo diretor, como aqueles vídeos sensacionalistas que mostram repetidamente uma manobra radical em alguma cobertura de esporte. Isso sem contar a transição de tons do filme, que pula de um momento delicado de Fantine para uma sequência desenfreada onde Jean Valjean tenta se entregar a justiça, só para um segundo depois sermos conduzidos de volta a um tom mais triste e melancólico como se estes espasmos narrativos nunca tivessem ocorrido. E para finalizar sua incompetência, Dickens e Oliver não conseguem estabelecer a noção da passagem dos anos dentro da trama, mesmo que para isso invistam constantemente em letreiros, fazendo reencontros como o que precede a finalização do filme parecerem tolos, já que não fosse a maquiagem indicando o envelhecimento de certos personagens, nem notaríamos que se passaram anos entre duas cenas.


     E é incrível, que mesmo em meio a tantos tropeços de unidades tão importantes como direção e montagem, Os Miseráveis consiga sobreviver carregado por performances atraentes e aplaudíveis (no caso de Hathaway) e por uma trama cativante. E ver ao final do longa, a imagem de todos os supostos "miseráveis" reunidos cantando o hino dos revolucionários, acaba causando com razão um bem vindo nó na garganta. E se a emoção surge com o fechamento do longa, é porque com certeza seus méritos superam seus equívocos.



NOTA: 8/10



   

Um comentário:

  1. Desde que vi o making off de Os Miseráveis no Universal Channel, fiquei com vontade de assisti-lo. Primeiramente pq adoro musicais, segundo, pq achei mto interessante o jeito que ele foi produzido, sendo gravado "ao vivo", ao contrário de outros musicais em que as músicas são gravadas em estúdio e os atores a interpretam depois.
    Adorei sua resenha mas, confesso que fiquei apreensiva para ver o filme. Pelo que vc comenta, ele aparenta estar mto aquém das minhas expectativas.
    Só espero que, por ser totalmente leiga no assunto, consiga assisti-lo de forma diversa e não enxergue tantos pontos negativos como vc viu.
    Bjs, Mi

    www.recantodami.com

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