quinta-feira, 5 de abril de 2018

CRÍTICA: UM LUGAR SILENCIOSO


O silêncio é parte fundamental da construção sonora de qualquer filme. As pessoas lembram da trilha, dos diálogos e dos efeitos de som, mas raramente atentam para a importância da ausência desses elementos. De modo simplista, basta dizer que sem o silêncio, o áudio de um filme seria uma série intermitente de ruídos - tipo o que ocorre em todos os Transformers. Cineastas inteligentes sabem que, se tudo é muito barulhento, inserir o silêncio pode representar um estrondo ensurdecedor para a audiência, e vice versa. Um Lugar Silencioso utiliza desse princípio com criatividade, e entende que o susto não é fruto do efeito sonoro que normalmente o acompanha, mas justamente consequência do silêncio que o precede.



Aliás, já pela simplicidade da trama fica patente que o interesse do projeto está em explorar as potencialidades da linguagem, pois desse modo a narrativa tem a responsabilidade de engrandecer o plot minimalista, que jamais perde tempo com explicações. O longa começa in media res, ou seja, somos atirados no meio da ação, entrando de supetão na rotina de uma pequena família que parece sobreviver num mundo pós-apocalíptico onde são caçados por algo (não sabemos o quê) que é atraído pelo som. De onde essas coisas vieram, o que houve com o resto do mundo e demais contextualizações do passado e presente desses personagens não importam ao diretor, roteirista, produtor e protagonista John Krasinski, que nunca antes na sua carreira tinha denunciado que seria capaz de tamanha maturidade e segurança.


O que é curioso sobre o filme de Krasinski (e, aposto, nem um pouco por acaso), é que dentro do gênero de Horror o silêncio já assumiu várias funções com o passar dos anos. Como esse cinema se baseia em assustar o espectador, ou seja, surpreendê-lo, é importante que os filmes se mantenham inovando na linguagem - não é à toa que o Terror e o Suspense já estiveram à frente de vários movimentos vanguardistas do Cinema. Por exemplo, hoje em dia a técnica mais clichê é silenciar todo o áudio de uma cena e então gerar um pico na trilha para criar um sobressalto na plateia - mas já houve um tempo em que o silêncio absoluto é que pontuava o susto. Um Lugar Silencioso não inventa um novo modo de assustar, mas trabalha de forma inteligente para subverter o clichê atual - ainda é um pico de som o que causa a maior parte dos sustos aqui, mas apenas porque a trama nos ensina que qualquer ruído pode custar a vida dos personagens. Torna-se vital, portanto, que esses conquistem a torcida do público.


Para que essa abordagem funcione, Krasinski e os designers de som não criam apenas cenas em que os efeitos sonoros são minimizados na mixagem. Ao invés disso, dedicam-se a construir diversos ambientes sonoros com dinâmicas diferentes. Perto do rio, por exemplo, onde a água corrente gera ruído constante, é possível conversar e o barulho da folhagem sendo pisoteada não é alarmante. Já dentro do celeiro onde moram os personagens, cada toque de mãos ou objeto manuseado tem um som correspondente que rompe o silêncio, deixando o espectador apreensivo, já que qualquer movimento mais brusco ou acidente pode significar uma fatalidade para aquela família. E Krasinski é inteligente quando enfoca recorrentemente em planos detalhe os objetos e demais elementos de cena que poderiam selar esse destino - e quando isso eventualmente acontece, o ruído é tratado como uma verdadeira explosão. Isso sem contar como o design de produção pensa os cenários para indicar a rotina silenciosa daquelas pessoas, com tecidos e objetos estofados que abafam o som, instalados nos utensílios mais rotineiros dos aposentos.


Além disso, a própria expressão corporal do elenco enfatiza a tensão da narrativa; já nos primeiros minutos do filme, para poder ler o rótulo em um frasco de antibióticos, Evelyn (Emily Blunt) vira o pequeno recipiente delicadamente com a ponta dos dedos - algo que a câmera observa colada no rosto dela, como se testemunhássemos um cirurgião fazer uma incisão microscópica. De outra forma, a fotografia de Charlotte Bruss Christensen, composta de tons puxados pro sépia, se alia à trilha de Marco Beltrami para conceber um tom bucólico - o filme se passa, apesar de tudo, numa fazenda. Essa melancolia campestre rompe ainda mais com as expectativas do gênero, ajudando com que os sustos tenham um maior frescor, mas também constrói uma atmosfera em que a narrativa pode semear os conflitos internos da pequena família. Aliás, a dinâmica entre os atores é um dos pilares do projeto. Não surpreende que Blunt e Krasinski (casados na vida real) tenham uma química bem estabelecida, mas a força de ambos está nas interações com as crianças, uma vez que os atores mirins tomam seu espaço em cena.


Noah Jupe, por exemplo, consegue inspirar o medo apenas com o olhar aterrorizado que lança para quase tudo, construindo muito bem a ideia de um menino que é jovem demais para lembrar de qualquer outro contexto em que não precisava temer pela própria vida a todo instante - além de denunciar como o garoto foi afetado por um evento que marca o prólogo da narrativa. E é sensível por parte de Krasinski como roteirista que permita aos seus personagens reagirem de maneiras diferentes a esse acontecimento traumático. Nesse quesito, Millicent Simmonds, que é deficiente auditiva na vida real, vive Regan (que é surda) com a segurança correta de uma menina que nunca conviveu com o sentido que assusta tanto os seus familiares - e o filme explora essa característica da menina para extrair tensão. Dependendo do momento, sua surdez pode agir como vantagem ou deficiência, o que, por si só, já dá margem ao debate sobre a classificação de surdez como “deficiência física” - a comunidade surda tem uma linguagem única e constitui uma cultura própria. É apropriado aplicar o termo “deficiência” nesse caso? Não seriam todas as outras pessoas as deficientes por não conseguirem se comunicar com elas? Pois, se a gente pensar, um estrangeiro visitando outro país cuja língua desconhece seria tão deficiente quanto Regan.

De qualquer forma, a reflexão é apenas mais uma prova da eficiência de John Krasinski, que diversas vezes remete ao Steven Spielberg de Jurassic Park, especialmente na maneira como constrói o clímax do filme. Entretanto, por ser um exemplar de horror e lançado agora, no começo do ano, Um Lugar Silencioso deve ficar longe dos louros que mereceria na temporada de premiações - no mínimo os quesitos sonoros deveriam ser reconhecidos. O que, de maneira alguma, deve ser motivo para que silenciemos sobre esta pequena e angustiante pérola.


Nota: 10/10


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