quinta-feira, 5 de julho de 2018

CRÍTICA: DESOBEDIÊNCIA


Um dos grandes trunfos de Uma Mulher Fantástica, filme anterior do cineasta chileno Sebastián Lelio, além da performance inebriante de Daniela Vega, residia no modo como ele abordava com sutileza as micro-violências infligidas proposital e acidentalmente à protagonista, uma mulher transexual. Em Desobediência fica patente que essa característica não vai se perder quando o título já surge num delicado colorido neon, que por contrastar diretamente com a monocromia geral da fotografia e do design de produção, sugere de forma econômica a insubordinação que nomeia o projeto.



Adaptando o livro de Naomi Alderman, o roteiro acompanha a fotógrafa Ronit (Rachel Weisz) quando esta se vê de volta à pequena comunidade de judeus ortodoxos onde cresceu para comparecer ao funeral do pai, o rabino da sinagoga local. Aliás, já fica claro desde os primeiros momentos  que esse retorno é doloroso para a protagonista, e há muito adiado e temido por ela. Primeiro porque a montagem investe um bom tempo observando cada etapa da sua viagem entre Nova York e a Inglaterra de forma silenciosa, e depois, porque finaliza essa sequência com um enquadramento da moça dentro do avião, que aos poucos se distanciando do seu rosto, a revela apertada entre outras duas pessoas e sendo gradualmente banhada pela luz desbotada do sol que entra por uma janela que não vemos, mas que parece revelar uma paisagem aterradora para Ronit, enquanto ainda uma trilha de tons sacros vem crescendo ao fundo - o conjunto de elementos é certeiro porque, sem dizer uma palavra sobre o assunto, já ilustra para o espectador o sentimento claustrofóbico experimentado pela mulher frente à inevitabilidade do seu destino melancólico.


E uma vez lá, Ronit descobre que os dois melhores amigos de infância, Dovid (Alessandro Nivola) e Esti (Rachel McAdams) se casaram, e ele, como discípulo do pai de Ronit, é o candidato mais favorável a se tornar o novo rabino. Entretanto, ao que tudo indica, a visita da moça não é bem-recebida pelos amigos, pela congregação ou mesmo pela família da fotógrafa, devido a algum incidente no passado que, descobriremos, tem a ver com um caso que teve com Esti na adolescência. Aliás, as diferenças entre as mulheres e suas trajetórias é salientada discretamente pelo figurino - embora ambas (assim como todos no filme) vistam cores escuras e terrosas o tempo todo, os caimentos de Esti são bem mais justos que as roupas largas e amassadas de Ronit.


Rachel Weisz vive a protagonista de maneira bem despojada também, corroborando com a ideia geral de sua personagem. Ronit é eloquente e predisposta à uma sinceridade brutal que, como fica claro com o passar do filme, é mais por uma questão de se proteger atrás da verdade do que, de fato, causar alguma mudança - e esse seu auto-condicionamento é perfeitamente compreensível quando passamos a entender as ameaças e violências veladas que existem naquela comunidade. Por exemplo, quando Moshe (Allan Corduner) constata para ela que deve ser difícil não ter recebido o perdão do pai antes do seu falecimento, a fala não busca confortar ou demonstrar solidariedade, mas sim ferir o emocional de moça, apontando para ela uma verdade que ele sabe ser dolorosa.


Enquanto isso, Rachel McAdams foge aos tipos cínicos e de intelecto afiado que se acostumou a viver, e coloca em Esti um tom de ingenuidade que beira a inocência, se aproximando mais, apesar disso, de uma mente que é apenas mais simples do que a de Ronit, o que condiz também com o fato de ela ter ficado pra trás e se tornado uma adulta em meio àquelas pessoas. E essa humildade de espírito inerente à moça torna-se profundamente tocante quando percebemos que, embora não negue a dor que a vivência naquele lugar lhe causou e ainda causa, Esti jamais culpa sua crença ou seu deus por isso, mas sim as pessoas que fazem a intermediação - inferindo que, por mais que deseje se libertar das correntes invisíveis impostas pela comunidade, ela ainda precisa se agarrar a algo que dê sentido à vida, e não está pronta para abandonar tudo e seguir outro caminho, como Ronit, o que já adianta o desfecho do filme.


Aliás, se Lelio preserva algo de belo na visão sobre religiosidade, isso fica restrito mesmo à perspectiva de Esti, porque no restante do tempo o cineasta faz questão de tratar os ritos e costumes daquela gente com genuíno estranhamento. O sexo tradicional às sextas à noite entre Esti e Dovid, por exemplo, é mostrado por lentes frias e burocráticas que demonstram o passo a passo do casal se despindo, se deitando e então começando as carícias como parte do protocolo de um serviço mecânico que deve ser executado naquela ordem tediosa. Da mesma forma que o jantar de luto para o Rav, em que os procedimentos costumeiros são encenados como mera pantomima, deixando claro sua falta de propósitos práticos. Ainda que o momento mais eficiente de Lelio nesse sentido chegue quando ele faz um corte seco para a sala de estudos dos homens judeus que, com as cabeças cobertas por mantas de prece e balançando-as para frente e para trás murmurando suas orações, sob a visão do diretor se assemelha muito mais a uma cela cheia de lunáticos esquizofrênicos.


Muito diferente do modo como enxerga uma transa entre Esti e Ronit, aí sim valorizando os toques, as primeiras carícias e preliminares como verdadeiros ritos de uma cerimônia religiosa - ideia que é salientada pela trilha.


O que leva a Dovid, que domina o clímax da narrativa. Preso entre suas crenças e o amor que sente pela esposa e também pela amiga de infância, o quase-rabino se desenvolve com complexidade nas mãos de Alessandro Nivola, inteligente ao manter um tom de voz sempre calmo que denota a sabedoria que se espera de um homem prestes a assumir o posto de referência dentro de uma comunidade religiosa. E quando eventualmente levanta a voz, sua alteração serve de termômetro para o espectador entender a gravidade da situação para ele. Lelio, inclusive, faz um trabalho admirável na rima narrativa que contempla o prólogo e o clímax do filme, ambos centrados em um homem falando a sua congregação. Se no primeiro temos Rav em planos abertos e discursando de forma esperançosa e passional sobre escolha e mudança, no segundo o diretor encarcera Dovid em planos fechados e de baixíssima profundidade de campo, além de, minutos antes, enquadrá-lo através de um vidro texturizado com listras que sugerem não só a fragmentação de sentimentos experimentada por ele, como simultaneamente também estabelecem as grades da prisão psico-emocional em que ele se encontra por causa disso.


Acertando igualmente por não ficar explicando demais porque os personagens tomam esta ou aquela decisão, Desobediência termina permitindo ao espectador ficar pensando e tentando entender melhor aqueles personagens e os motivos que os levam para longe de caminhos que, sim, seriam cinematograficamente esperados, mas que não teriam tanta coerência com o que foi construído até ali sobre eles.


Nota: 10/10


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