quinta-feira, 7 de setembro de 2017

UMA MULHER FANTÁSTICA


Antes de começar, preciso divagar um pouco, e entenderei se quiser pular para o terceiro parágrafo deste texto, que é quando começo, de fato, a falar do filme em questão.
Decidiu começar por aqui? Ótimo, pois bem: já percebeu como o cotidiano tem uma linguagem? Os ambientes que você frequenta falam uma língua fluentemente todos os dias, é por isso que sabemos instintivamente que tem algo diferente acontecendo quando o trânsito tá mais lento, ou o tempo meio estranho, ou as pessoas num humor ou ritmo atípicos. A quebra dessa linguagem, entretanto, é como a invenção de uma nova palavra. Se um carro invade uma calçada e mata alguém, por exemplo, isso rompe o monólogo do dia a dia, é um evento. Porém, logo depois disso o fato extraordinário torna-se precedente e entra para o repertório de coisas que acontecem. Assim, se acidentes de carro ocorrem outra vez, essas fatalidades ganham familiaridade na rotina de um espaço, e passam a fazer parte da linguagem do cotidiano. Em outras palavras, nos acostumamos com elas, e com os assaltos, e com os escândalos de corrupção, e com aquele cachorro que sempre late quando você passa na frente daquela casa na sua rua, e por aí vai. Essa linguagem absorve quase qualquer coisa… Desde que ela esteja prevista nos padrões sociais vigentes do que é aceitável. Aviões jogados contra prédios em Nova York, nesse caso, é uma palavra difícil de ser aprendida nessa língua. Aparentemente, pessoas transexuais também. E não faço a comparação à toa, pois se a nossa sociedade contemporânea tem a mesma dificuldade para aceitar um atentado com centenas de mortos e um indivíduo que se identifica com um gênero diferente daquele em que nasceu, é porque, no fundo, ela ainda considera ambas as coisas uma tragédia de proporções equivalentes.


Portanto:     
Quando você se diferencia dos padrões sociais vigentes, se torna um calombo no tecido do cotidiano. Talvez você tenha a sorte de ninguém tentar desfazer o amassado à força, mas as pessoas ainda assim vão tropeçar em você, e talvez nenhuma delas vá assumir o erro e dizer: “É, talvez eu devesse ter levantado os pés, perdão”. O mais provável é que te culpem pelo incidente. Porém, o que, em geral seus amigos e familiares não entendem, é que essas pequenas violências são tão destrutivas quanto aquelas mais diretas e premeditadas - falo de crimes de homofobia, misoginia e racismo, sim. E é essa dinâmica no dia a dia de Marina, uma mulher transexual, que o filme Uma Mulher Fantástica ilustra de forma tão dolorosa através do olhar delicado que lança sobre sua protagonista - e boa parte de sua força reside na interpretação forte e inteligente da atriz (também transexual) Daniela Vega.



Namorada de um homem mais velho, Marina é impelida a lidar com os familiares e amigos de Orlando (Francisco Reyes) depois que este falece subitamente por conta de um aneurisma. Ela fica responsável então pelos bens do parceiro, incluindo carro, apartamento e até mesmo sua cadela de estimação, o que não agrada a família dele. O caso se agrava quando descobrem hematomas no corpo de Orlando, que levam as autoridades a pensar que ele agredia a companheira. A partir deste cenário, o longa de Sebastián Lelio se debruça na tarefa de construir uma diversidade de interações, no claro intuito de descortinar a sutileza com que o preconceito corrói a integridade emocional, psicológica e física de Marina.


Aliás, este constante atrito com a sociedade não é algo que escapa à performance de Daniela Vega, que já imprime desde sua primeira cena a introspecção correspondente a uma pessoa que sofre com a desconfiança e ataques diários há muito tempo. Embora não lhe falte força e personalidade, Marina raramente rebate a hostilidade com que normalmente é recebida, e quando o faz, Vega prefere um desesperador tom de defesa e apaziguamento - e “desesperador” porque, para qualquer outro indivíduo sendo proibido de comparecer ao funeral de seu parceiro recém-falecido, provavelmente se enfurecer e bater o pé seria uma atitude mais plausível. Por isso a revolta quando percebemos que, se Marina quase nunca contesta essas injustiças, é por já ter compreendido há muitos anos a resiliência delas, e que bater de frente apenas alimenta a ira de seus agressores - já que esta é fruto da incompreensão, do medo subsequente e, portanto, irracional. Mais de uma vez os personagens questionam “o que” a protagonista é, sendo especialmente frustrante e flagrante como a ex-mulher de Orlando, Sonia (Aline Küppenheim), por exemplo, levanta a questão com sinceridade enquanto pede desculpas à Marina, falhando em perceber no olhar da outra a resposta óbvia: um ser humano, como qualquer outro. Inclusive, o cenho fechado e o olhos sérios que Vega investe na personagem poderiam ser descritos como uma “expressão hematoma”, pois ilustra com perfeição o sentimento dolorido das pancadas recorrentes aguentadas por ela.


Que nem sempre se resumem a agressões diretas, como as insufladas por Bruno (Nicolás Saavedra), filho do falecido, podendo se manifestar na maneira condescendente como uma funcionária pública fala com Marina, na recusa de um policial de usar seu nome de escolha ou o gênero correto na designação, ou como sua chefe se dirige a ela com falsidade, contendo o temperamento obviamente por não querer ser considerada preconceituosa e, ainda, no modo como mesmo o bondoso irmão de Orlando, Gabo (Luis Gnecco), não sabe o modo apropriado de cumprimentá-la. Estes pequenos desajustes da sociedade são quase sempre tão corrosivos quanto um ato de hostilidade concreto. Digo, para aqueles que não representam de forma alguma o tal calombo no cotidiano, o prazer de estar próximo, por exemplo, a um amigo, pode não significar que este provavelmente estará instintivamente questionando as suas intenções, emoções e pensamentos, pois esses medos são frutos ainda de uma construção social inerente. Todo ser humano demonstra e entende amor através do carinho físico e verbal. Ora, se estes meios se mostram corrompidos pelo medo, mesmo que dois indivíduos possam nutrir amizade um pelo outro, a comunicação deste potencial entre eles dificilmente vai acontecer, ao menos não de forma clara e eficiente.


Que nada disso esteja discursado em tela, é ainda mais admirável quando paro e penso sobre Uma Mulher Fantástica, pois indica o potencial que a sutileza do filme tem de inspirar a reflexão séria e aprofundada da temática a que se propõe estudar. No processo, ainda criando momentos emblemáticos, como a dança imaginada de Marina em um clube noturno, ou os dois instantes em que ela se confronta com espelhos, um na rua, quando se enxerga de corpo todo como o mundo a vê, e noutro, em um pequeno e redondo colocado entre suas pernas, colocando seu rosto no lugar dos genitais, sintetizando a mensagem do filme com perfeição: não deveria importar o que alguém tem como sexo, e qual o uso que faz disso; apenas o fato de que, seja lá quem for, trata-se de uma pessoa.




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