quinta-feira, 27 de setembro de 2018

O CINEMA DIZ: #ELENÃO - Nº 2




Hoje eu convidei o Ulisses da Motta. Professor e crítico de cinema, também dirigiu os premiados curtas Luz Natural e O Gritador, além de Kassandra, vencedor do prêmio de Melhor Fotografia no Festival de Gramado. Coordenou o núcleo de roteiros da série infantil Universo Z, transmitida para 42 países e já fez mochilão pelo país para ajudar projetos independentes de amigos. Atualmente está envolvido com projetos de longa-metragem e séries para a TV como roteirista e diretor. 


À Meia-Noite Levarei tua Liberdade: Zé do Caixão e espírito da Ditadura

É uma constatação bastante comum entre pesquisadores de cinema: o gênero horror costuma, de certa forma, antecipar ou ler através de alegorias violentas o espírito da sociedade e da época em que são produzidos. Essa análise costuma se confirmar nos mais diversos cenários, dos filmes expressionistas “prevendo” os horrores do nazismo à sátira cáustica dos zumbis de George Romero à sociedade hiperconsumista. Não seria diferente no Brasil. Afinal, aqui o cinema de horror nasceu junto com a Ditadura Militar.

Sim, o ano de 1964 viu nascer o regime militar – ainda tímido e revestido de vernizes de defesa da democracia, que logo desbotariam e descascariam. Também viu a estreia comercial do que se considera nosso primeiro longa de horror, À Meia-noite Levarei sua Alma, de José Mojica Marins. Hoje, é um filme considerado um clássico absoluto do gênero, em especial no exterior.

Mojica é um dos cineastas mais fascinantes da nossa história e um dos mais perfeitos reflexos da cultura popular nas telas grandes. Filho de artistas circenses, não teve instrução tradicional. Criou seu amor por cinema com os filmes que o pai, estabelecido como gerente de cinema em São Paulo, projetava. Depois de rodar um western e um melodrama, Mojica resolveria investir no gênero da sua paixão, o horror. Criou o personagem Zé do Caixão a partir de um pesadelo: um homem de capa e chapéu o arrastou para uma sepultura, onde Mojica viu a data da sua morte na lápide.

Inicialmente, Mojica queria outro ator para o personagem. No fim das contas, ele assumiu o manto – literalmente.  Além, claro de dirigir e dividir o roteiro e a produção com outros parceiros. A equipe era minúscula, os cenários improvisados, a fotografia problemática. O resultado é um soco no estômago. Provavelmente, o horror mais hardcore feito no mundo até aquela data. Foi um grande sucesso no Brasil e, décadas depois, ganhou lançamento em home vídeo (e uma legião de fãs) nos Estados Unidos.

Mas isso é uma história bem conhecida. O que é impressionante é a forma como Zé do Caixão personificava os futuros horrores da Ditadura que recém se instalava. A começar pela própria ambientação do filme: uma pequena cidade do interior, onde o agente funerário Zé do Caixão reina supremo. Ele se sobrepõe a qualquer traço de legalidade e controla a população através da mais eficiente das ferramentas: o medo.




Em várias cenas, fica bem explícito: para não sofrer nas mãos de Zé, basta aos moradores não se contraporem a ele. Talvez seria uma atitude fácil de se tomar, não fosse o fato de que o coveiro frequentemente tira proveito dos moradores. Há uma cena ainda no primeiro ato que demonstra a política de abuso e medo com a qual Zé do Caixão domina aquelas pessoas. Numa ida à taverna local, ele se intromete num jogo de cartas. Quando um dos participantes ganha, Zé se recusa a aceitar a vitória justa do sujeito. E corta seus dedos com uma garrafa quebrada

Apenas um homem se revolta contra a situação e tenta atacar Zé. É brutalmente chicoteado pelo vilão, às vistas de todos na taverna. A montagem corta da agressão para a exagerada expressão de pânico dos frequentadores, incapazes de reagir à violência. O argumento que o faz parar é um “você vai acabar matando o homem” – ou seja, longe de apelar para a desumanidade do ato. O que demove Zé não é a violência do que faz, mas um hipotético exagero na punição.

Essa sequência da taverna é perfeito símbolo de uma sociedade oprimida pelo pavor. Além dessas agressões, Zé assedia a mulher que o atende, obriga um homem a comer carne (é Sexta-Feira Santa), é cínico e ameaçador ao coagir os demais frequentadores a não delatá-lo.

Em cenas seguintes, o agente funerário mostra sua aversão elitista pelo povo, considerando-se um ser humano superior aos demais. Seu preconceito e misoginia são latentes; mais que isso, ele os justifica. É dono de uma lógica muito própria: seu objetivo é ter uma descendência perfeita. Tal como os apoiadores da Ditadura, que tinham um raciocínio muito particular de eliminar aqueles considerados “subversivos” da sociedade, como se assassinatos, tortura e perseguição pudessem comprar o bem comum.  

Portanto, seu regime de medo é muito semelhante ao que a sociedade brasileira viveria por mais 21 anos a contar da estreia do longa: bastava ficar quieto e não se rebelar contra os estupros e assassinatos – quase todos acompanhados de martírio cruel – cometidos pelo protagonista. Não quer problemas? Cuide da sua vida e fique quieto. Quem levantasse a voz – como é o caso do médico da cidade –, era rapidamente executado e os traços da sua existência, apagados.

O “problema”, claro, é que o silêncio e o bom-comportamento não bastavam, no fim das contas. Se alguém por acaso surge acidentalmente no caminho dos objetivos de Zé do Caixão, ele simplesmente assassina. É o que acontece com seu suposto melhor amigo, casado com a mulher que Zé deseja.




Apesar de estarmos falando de um filme lançado no ano do golpe, o que ele prenunciava eram fatos: o AI-5, que colocaria de ver uma mordaça nas liberdades civis, aconteceria dali quatro anos, em 68; a tortura como método de controle político em tomaria suas piores formas na passagem dos anos 60 para os 70.

Mesmo aí Zé foi profético: na continuação Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967), o coveiro cria elaboradas torturas no porão de uma casa misteriosa. Um prenúncio das masmorras secretas em prédios públicos, usadas para supliciar opositores dos militares. Não à toa, foi seu primeiro filme censurado pela Ditadura, que obrigou que no final Zé se convertesse ao catolicismo.

Voltando para À Meia-noite Levarei sua Alma, a ironia do terceiro ato é intensa: o povo está tão anestesiado pelo medo imposto por Zé do Caixão que acaba nunca reagindo. A única aparente ameaça aos seu status quo é uma cigana (vejam só, a mulher como contraposição à tirania), que vaticina o fim do vilão. Aliás, nunca esqueçamos: mesmo sendo o protagonista, Zé é tratado como criminoso pelo roteiro, e o filme não concorda com seus atos.

Com a população engessada, quem acaba de se encarregar de dar fim aos horrores do agente funerário são as almas dos mortos, numa inesperada reviravolta da narrativa rumo ao sobrenatural. Parece dizer que o fim daquela situação precisaria de uma intervenção de forças fantasiosas. Que aquela geração estava perdida no seu medo excessivo do regime de exceção promovido por somente uma pessoa.

Toda vez que surge o fantasma da “antidemocracia”, podemos lembrar de Zé do Caixão. Seu ódio e violência são frutos de sua lógica distorcida e misantrópica. Sua manifestação mais suave é o desprezo pela população, seu elitismo, seu sentimento de superioridade; a mais grave, o crime justificado por esta lógica.

Fico pensando se não é à toa que temos, nos últimos anos, a maior produção de fitas de horror da nossa história. Alguns deles com questões sociais latentes, como As Boas Maneiras (direção de Juliana Rojas e Marco Dutra) e O Animal Cordial (direção de Gabriela Amaral).

Impossível não imaginar: se o ódio pela democracia e pelas diferenças tomar conta do país, teríamos um clímax como o de À Meia-noite Levarei sua Alma, em que as almas dos mortos, furiosos pelo sangue em vão, ergam-se para tirar satisfações?

Talvez o alvo, desta vez, sejamos nós, que desprezamos os avisos.



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Entenda o que é, porque existe e leia as outras edições do projeto O Cinema Diz: #EleNãoem que convidei várias pessoas para escolher e escrever sobre um filme que converse com a nossa situação política, no intuito de refletir e ilustrar os riscos que estamos correndo.


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