Hoje eu convidei o Ulisses da Motta. Professor e crítico de cinema, também dirigiu os premiados curtas Luz Natural e O Gritador, além de Kassandra, vencedor do prêmio de Melhor Fotografia no Festival de Gramado. Coordenou o núcleo de roteiros da série infantil Universo Z, transmitida para 42 países e já fez mochilão pelo país para ajudar projetos independentes de amigos. Atualmente está envolvido com projetos de longa-metragem e séries para a TV como roteirista e diretor.
À Meia-Noite Levarei tua Liberdade: Zé do Caixão e espírito da Ditadura
É uma constatação bastante comum
entre pesquisadores de cinema: o gênero horror costuma, de certa forma, antecipar
ou ler através de alegorias violentas o espírito da sociedade e da época em que
são produzidos. Essa análise costuma se confirmar
nos mais diversos cenários, dos filmes expressionistas “prevendo” os horrores
do nazismo à sátira cáustica dos zumbis de George Romero à sociedade
hiperconsumista. Não seria diferente no Brasil.
Afinal, aqui o cinema de horror nasceu junto com a Ditadura Militar.
Sim, o ano de 1964 viu nascer o
regime militar – ainda tímido e revestido de vernizes de defesa da democracia,
que logo desbotariam e descascariam. Também viu a estreia comercial do que se
considera nosso primeiro longa de horror, À Meia-noite Levarei sua Alma, de
José Mojica Marins. Hoje, é um filme considerado um clássico absoluto do
gênero, em especial no exterior.
Mojica é um dos cineastas mais
fascinantes da nossa história e um dos mais perfeitos reflexos da cultura
popular nas telas grandes. Filho de artistas circenses, não teve instrução
tradicional. Criou seu amor por cinema com os filmes que o pai, estabelecido
como gerente de cinema em São Paulo, projetava. Depois de rodar um western e um
melodrama, Mojica resolveria investir no gênero da sua paixão, o horror. Criou
o personagem Zé do Caixão a partir de um pesadelo: um homem de capa e chapéu o
arrastou para uma sepultura, onde Mojica viu a data da sua morte na lápide.
Inicialmente, Mojica queria outro
ator para o personagem. No fim das contas, ele assumiu o manto – literalmente. Além, claro de dirigir e dividir o roteiro e a
produção com outros parceiros. A equipe era minúscula, os cenários
improvisados, a fotografia problemática. O resultado é um soco no
estômago. Provavelmente, o horror mais hardcore feito no mundo até aquela data.
Foi um grande sucesso no Brasil e, décadas depois, ganhou lançamento em home
vídeo (e uma legião de fãs) nos Estados Unidos.
Mas isso é uma história bem
conhecida. O que é impressionante é a forma como Zé do Caixão personificava os
futuros horrores da Ditadura que recém se instalava. A começar pela própria
ambientação do filme: uma pequena cidade do interior, onde o agente funerário
Zé do Caixão reina supremo. Ele se sobrepõe a qualquer traço de legalidade e
controla a população através da mais eficiente das ferramentas: o medo.
Em várias cenas, fica bem
explícito: para não sofrer nas mãos de Zé, basta aos moradores não se
contraporem a ele. Talvez seria uma atitude fácil de se tomar, não fosse o fato
de que o coveiro frequentemente tira proveito dos moradores. Há uma cena ainda no primeiro ato
que demonstra a política de abuso e medo com a qual Zé do Caixão domina aquelas
pessoas. Numa ida à taverna local, ele se intromete num jogo de cartas. Quando
um dos participantes ganha, Zé se recusa a aceitar a vitória justa do sujeito.
E corta seus dedos com uma garrafa quebrada
Apenas um homem se revolta contra
a situação e tenta atacar Zé. É brutalmente chicoteado pelo vilão, às vistas de
todos na taverna. A montagem corta da agressão para a exagerada expressão de
pânico dos frequentadores, incapazes de reagir à violência. O argumento que o
faz parar é um “você vai acabar matando o homem” – ou seja, longe de apelar
para a desumanidade do ato. O que demove Zé não é a violência do que faz, mas
um hipotético exagero na punição.
Essa sequência da taverna é
perfeito símbolo de uma sociedade oprimida pelo pavor. Além dessas agressões,
Zé assedia a mulher que o atende, obriga um homem a comer carne (é Sexta-Feira
Santa), é cínico e ameaçador ao coagir os demais frequentadores a não
delatá-lo.
Em cenas seguintes, o agente
funerário mostra sua aversão elitista pelo povo, considerando-se um ser humano
superior aos demais. Seu preconceito e misoginia são latentes; mais que isso,
ele os justifica. É dono de uma lógica muito própria: seu objetivo é ter uma
descendência perfeita. Tal como os apoiadores da Ditadura, que tinham um
raciocínio muito particular de eliminar aqueles considerados “subversivos” da
sociedade, como se assassinatos, tortura e perseguição pudessem comprar o bem
comum.
Portanto, seu regime de medo é
muito semelhante ao que a sociedade brasileira viveria por mais 21 anos a
contar da estreia do longa: bastava ficar quieto e não se rebelar contra os
estupros e assassinatos – quase todos acompanhados de martírio cruel –
cometidos pelo protagonista. Não quer problemas? Cuide da sua vida e fique
quieto. Quem levantasse a voz – como é o caso do médico da cidade –, era
rapidamente executado e os traços da sua existência, apagados.
O “problema”, claro, é que o
silêncio e o bom-comportamento não bastavam, no fim das contas. Se alguém por acaso
surge acidentalmente no caminho dos objetivos de Zé do Caixão, ele simplesmente
assassina. É o que acontece com seu suposto melhor amigo, casado com a mulher
que Zé deseja.
Apesar de estarmos falando de um
filme lançado no ano do golpe, o que ele prenunciava eram fatos: o AI-5, que
colocaria de ver uma mordaça nas liberdades civis, aconteceria dali quatro
anos, em 68; a tortura como método de controle político em tomaria suas piores
formas na passagem dos anos 60 para os 70.
Mesmo aí Zé foi profético: na
continuação Esta Noite Encarnarei no Teu
Cadáver (1967), o coveiro cria elaboradas torturas no porão de uma casa
misteriosa. Um prenúncio das masmorras secretas em prédios públicos, usadas
para supliciar opositores dos militares. Não à toa, foi seu primeiro filme
censurado pela Ditadura, que obrigou que no final Zé se convertesse ao
catolicismo.
Voltando para À Meia-noite Levarei sua Alma, a ironia
do terceiro ato é intensa: o povo está tão anestesiado pelo medo imposto por Zé
do Caixão que acaba nunca reagindo. A única aparente ameaça aos seu status quo
é uma cigana (vejam só, a mulher como contraposição à tirania), que vaticina o
fim do vilão. Aliás, nunca esqueçamos: mesmo sendo o protagonista, Zé é tratado
como criminoso pelo roteiro, e o filme não concorda com seus atos.
Com a população engessada, quem
acaba de se encarregar de dar fim aos horrores do agente funerário são as almas
dos mortos, numa inesperada reviravolta da narrativa rumo ao sobrenatural.
Parece dizer que o fim daquela situação precisaria de uma intervenção de forças
fantasiosas. Que aquela geração estava perdida no seu medo excessivo do regime
de exceção promovido por somente uma pessoa.
Toda vez que surge o fantasma da
“antidemocracia”, podemos lembrar de Zé do Caixão. Seu ódio e violência são
frutos de sua lógica distorcida e misantrópica. Sua manifestação mais suave é o
desprezo pela população, seu elitismo, seu sentimento de superioridade; a mais
grave, o crime justificado por esta lógica.
Fico pensando se não é à toa que
temos, nos últimos anos, a maior produção de fitas de horror da nossa história.
Alguns deles com questões sociais latentes, como As Boas Maneiras (direção de Juliana Rojas e Marco Dutra) e O Animal Cordial (direção de Gabriela
Amaral).
Impossível não imaginar: se o
ódio pela democracia e pelas diferenças tomar conta do país, teríamos um clímax
como o de À Meia-noite Levarei sua Alma,
em que as almas dos mortos, furiosos pelo sangue em vão, ergam-se para tirar
satisfações?
Talvez o alvo, desta vez, sejamos
nós, que desprezamos os avisos.
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Entenda o que é, porque existe e leia as outras edições do projeto O Cinema Diz: #EleNão, em que convidei várias pessoas para escolher e escrever sobre um filme que converse com a nossa situação política, no intuito de refletir e ilustrar os riscos que estamos correndo.
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