domingo, 5 de fevereiro de 2012

MILLENNIUM - OS HOMENS QUE NÃO AMAVAM AS MULHERES



    Conseguir manter o espectador na poltrona do cinema por um longo tempo é fácil. O difícil é justamente tirá-lo metaforicamente de sua poltrona durante este tempo. Transportá-lo para um universo, para trama que se pretende contar em um filme durante pouco mais de duas horas e meia é uma tarefa que poucos realizam com tanta maestria e certeza de sucesso. Um dos poucos que, pelo menos a mim, sempre consegue cativar desta maneira é o cineasta David Fincher. Aqui, o diretor de SevenClube da LutaZodíacoO Curioso Caso de Benjamin Button e A Rede Social, arranca o espectador da poltrona para dentro da tela já nos primeiros minutos ao trazer um dos créditos iniciais mais coerentes, adequados e espetaculares que este que vos escreve já viu, o realizador já apresenta logo de cara que não é a investigação sobre a qual se trata a estória, não é o seu desfecho ou a revelação do culpado que farão o espectador ficar na ponta da cadeira durante toda a projeção, e sim, os seus personagens incomuns e seus conflitos e perturbações internas que serão revelados durante o filme. Mais especificamente, os conflitos, os desafios, as nuances, a complexidade e a imprevisibilidade que fazem da protagonista Lisbeth uma personagem tão cativante em tela quanto, por exemplo, foi o Coringa de Heath Ledger ou o Coronel Hans Landa de Christopher Waltz. E isso claro se deve não só a direção de Fincher, mas ao trabalho maravilhoso da atriz Rooney Mara.



     O filme não se demora em introduzir seus protagonistas, assim logo conhecemos Mikael Blomkvist (Daniel Craig), um jornalista investigador que está sendo processado por falsas afirmações publicadas pelo mesmo na popular revista Millennium (Que dá título a trilogia de livros que por sua vez inspiraram o filme). Logo Mikael é convidado por um antigo magnata chamado Henrik Vanger (Christopher Plummer) para investigar o desaparecimento de sua sobrinha Harriet há mais de 40 anos. Interessado no ótimo pagamento e na oportunidade de se livrar da imprensa acusadora durante um tempo, o jornalista aceita se mudar para a ilha onde vive a família de Henrik e investigar qual deles seria o culpado pelo desaparecimento e morte de Harriet. Paralelamente a isso somos apresentados a estrela do espetáculo. Lisbeth Salander (a impecável Rooney Mara) é uma ótima investigadora que trabalha em segredo para uma empresa do ramo, vive sob a tutela do Estado por ser considerada anti-social (o que, aliás, leva a uma das subtramas mais envolventes e visualmente impactantes do filme) e exibe toda sua natureza complexa, hostil, frágil e perigosa em seu visual punk, cheio de piercings, tatuagens, roupas escuras, correntes, maquiagem pesada e moicanos. E quando a trama decide unir os dois personagens a fórmula está pronta. Novas descobertas, o desenvolvimento de uma parceria incomum e um desfecho incerto são o bastante pra grudar os olhos do espectador na tela pelas próximas duas horas de filme.



     A confiança de Fincher de que seus personagens são interessantes o suficiente para manter o público interessado é notável. Afinal o diretor, seu roteirista Steven Zaillian e seus montadores Kirk Baxter e Angus Wall, dedicam nada menos que uns trinta minutos de projeção para apresentar seus protagonistas antes de começar a desenvolver a investigação de Harriet. E não menos notável é o fato de ousarem se estender por mais uns quinze minutos após a resolução do caso, confiando acertadamente que depois de tanto tempo acompanhando o desenvolvimento destas figuras tão fascinantes, o grande interesse do espectador já estaria em saber que destino cada um teria após o caso em si.


     Mas vamos direto ao assunto. O que faz com que estes personagens sejam tão cativantes? Bem, méritos devem ser dados ao autor dos livros Stieg Larsson por criar estas duas figuras tão diferentes e uni-las em uma trama. Mas seus intérpretes e a química criada entre eles é o que faz desta parceria algo crível e impressionante em tela. Mikael é um homem que leva uma boa vida, ou ao menos levava antes dos escândalos em que se mete, fino e cheio de classe o jornalista jamais perde a compostura e a educação, algo que, aliás, acaba levando a uma das sacadas mais geniais do roteiro em meio ao clímax do filme. Craig interpreta Mikael com a presença em tela que se espera do ator que da vida a James Bond, porém surpreende ao mostrar o mesmo Mikael como um ser humano acovardado por estar jogado em um ambiente hostil e perigoso demais para seus costumes. Assim, ver Craig arregalando os olhos, mantendo a voz vacilante quando está inseguro é algo que compõe o personagem de uma forma mais realista. E é engraçado ver como o ator contrasta esse tipo de comportamento no seu personagem. Por exemplo, como se mostra ágil e pomposo ao adentrar o apartamento de Lisbeth quando fala com a garota pela primeira vez, mostrando o quão seguro o jornalista pode ser quando tem controle da situação, principalmente quando esta pode ser resolvida através da conversa e discussão de um assunto, mostrando que realmente sua área de segurança é a da palavra, escrita ou dita. O que se contrapõe a primorosa atenção que o mesmo ator dá a fala pausada e insegura, ou a postura encurvada e acuada quando seu personagem se mostra pressionado por um perigo físico em potencial mais pro fim da projeção.



     Agora, Rooney Mara merece seu próprio parágrafo. Quem viu a versão Sueca desta estória sabe o que Noomi Rapace fez por Lisbeth Salander, tornando-a uma personagem que por si só fazia valer assistir aquele (não tão bom) filme. Se em Mikael encontramos um jornalista investigador aristocrático que mantém um bom humor quase que constante apesar de tudo, em Lisbeth temos uma figura diminuta e nada imponente. Assim temos um contraste enorme entre a corpulência do primeiro que se acovarda a qualquer ameaça física, com a figura desta última que mesmo aparentando ser extremamente frágil (e neste quesito, seus piercings espalhados pelo rosto são adjetivos visuais a esta fragilidade e suscetividade a dor) se mostra mais durona e resistente. E Lisbeth é uma figura complexa que Mara consegue transpor com talento para a tela. Seu andar com os braços unidos ao corpo, cabeça baixa e olhos sempre focados em algo ou alguém, demonstram a constante desconfiança de uma pessoa que já passou por tudo que ela passou. Sua fala baixa carregada de sotaque e hostil só é mais ajudada ainda pelas linhas escritas por Zaillian, que coloca frases diretas e objetivas para saírem dos lábios da atriz. Demonstrando o quão Lisbeth se moldou para que sua exposição à sociedade fosse a mínima possível. A falta de humor na interpretação da atriz, seus movimentos rápidos e precisos criam uma personagem incrível, que assim como o Coringa de Ledger não se apóia na caracterização incomum para criar um personagem cativante. Pelo contrário, usa desta caracterização para justificar sua interpretação, tornando uma parte da outra. Assim acreditamos, entendemos e esperamos por cada aparição desta talentosíssima investigadora que poderia ser facilmente tomada por uma figura antipática, mas que na verdade, acaba sendo nossa heroína dentro da trama, nos fazendo torcer por sua segurança e temer por seu destino. Na minha opinião, a atriz já teria o Oscar, mesmo eu não tendo conferido todos os outros trabalhos indicados, mas não deve levar este ano, o que é uma pena, pois de longe o trabalho empregado aqui por Mara é algo genial e fascinante.


     Já Plummer entrega um Henrik que embora velho, não aparenta fraqueza nenhuma, mesmo quando em uma cadeira de rodas doente. O ator dá aos poucos momentos em que aparece em tela uma vivacidade incrível ao seu personagem, nos fazendo acreditar que aquele homem realmente já foi o patriarca de uma família bem sucedida. Já Stellan Skarsgard vive com eficiência e talento habituais o carismático Martin Vanger. E notem pelos nomes um dos grandes acertos da produção. Manter a trama situada na Suécia, como no livro e na versão cinematográfica anterior. Acontece que a geografia montanhosa e fria do local é um quesito importantíssimo dentro da estória. E acaba sendo usada com aplausos meus pelo fotógrafo Jeff Cronenweth, que destaca o branco sufocante das paisagens externas e traz tons esverdeados e às vezes amarelados doentios para os ambientes fechados. E mesmo a composição da fotografia em palhetas cinzas com a bela decoração de set feita por K. C. Fox em dado momento passa toda a atmosfera mofada e poeirenta de uma casa que Mikael visita. 



     E se Baxter e Wall constroem o filme com uma montagem sóbria e dosada, que articula muito bem as viradas das tramas de Lisbeth e Mikael, outra dupla de profissionais dá o clima de constante tensão ao usar de uma trilha soturna e, vejam só, às vezes muito confortante. Em vez de investir em tons dissonantes e incomodativos os compositores Trent Razor e Atticus Ross (vencedores do Oscar de trilha justamente pelo último filme de Fincher, A Rede Social) criam uma trilha com faixas crescentes, usando de instrumentos basicamente eletrônicos e notas graves. Os dois conseguem dar peso ao próprio ar nos momentos certos da projeção, garantindo a total atenção do espectador e às vezes surpreendendo ao não cometerem o erro de serem redundantes tematicamente. Pois, por mais que a música em dados momentos seja um elemento indispensável na criação de tensão, suspense ou agonia, em outros a própria direção do sempre ótimo David Fincher já faz isto sozinha, deixando espaço para que Razor e Ross brinquem com composições mais suaves, bonitas e até divertidas, algo que, surpreendentemente, em momento algum destoa do clima criado tão habilmente por Fincher. 



     Mantendo sua câmera quase sempre baixa, o diretor brinca com travelling's e com a baixa profundidade de campo criada pela fotografia predominantemente escura. E assim os fundos desfocados ajudam a criar uma atmosfera ainda mais densa e desconhecida, nos ajudando a entrar na pele dos personagens. Aliás, palmas também para o pessoal do Sound Design, que em dado momento usa genialmente o assovio do vento como elemento de tensão, ou por caracterizar os movimentos de Lisbeth com um ranger de couro muito característico que em certo plano chega a preceder a entrada da personagem em cena. 



     Nunca poupando seu público de cenas fortes ou chocantes (e elas existem durante toda a projeção), Fincher ainda sugere violência como ninguém e cria humor inesperadamente com talento, mesmo na cena mais tensa ele para a ação por meio segundo para que Lisbeth pergunte "Posso Matá-lo (a)?" (veja o filme para entender). E assim, depois de quase duas horas e quarenta minutos, o diretor encerra sua trama deixando um gosto de quero mais para o espectador que foi levado a se envolver tão intimamente com cada uma destas figuras tão bem retratadas e vividas em tela. E tenham certeza, o filme é sobre eles, a investigação é uma mera desculpa para que possamos conhecê-los e acompanhá-los em ação. 

NOTA 10/10    

2 comentários:

  1. Fantástico filme! Deixa a versão sueca no chinelo. Por afirmar isso, até deixei algumas pessoas indignadas lá naquele outro blog que eu tenho.

    Mas fazer o quê, né? David Fincher é sensacional. Um cineasta com talento incrível. A história parece ser interessante por natureza (quero muito ler o livro agora pra poder afirmar isso com certeza), e o roteiro e a direção de Fincher fazem com que ela se torne algo tenso e instigante (o que não senti na outra versão). Os personagens são realmente incríveis, e as atuações, principalmente de Rooney Mara, são muito boas.

    Enfim, um filme brilhante!

    Abraço,
    Thomás
    http://brazilianmovieguy.blogspot.com/

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  2. Baaaaaaita filme, realmente eu não parava pra ver algo assim no cinema faz tempo. Bom achei o Daniel Craig iria ficar marcado como "James Bond", mas não. Acho que o único intérprete do personagem que não ficou com o selo do personagem e consegue se sair bem em outros trabalhos. Muito boa a atuação dele. A guria também, Rooney Mara, muito bem no papel, que diga-se de passagem difícil de se interpretar, talvez até melhor que o seu colega de atuação.
    Adoro o clima meio suspense e "blasé" que o filme mostra. Paisagens frias e sem cor, praticamente nublado o filme todo. E seus personagens colaboravam para com o cenário sempre com um cigarro a boca ou uma caneca de café esfumaçante.
    Filme meio "parado" mas ainda sim que prende sua atenção.
    Me fez ficar interessado mais pela história e pretendo ler seus três livros em breve.
    Bom texto, Yuri. Continua com o blog que tá legal. Abraço.

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