segunda-feira, 1 de abril de 2019

ANÁLISE FILME "NÓS" - AS VEIAS ABERTAS DA MEMÓRIA


Tentando não dar spoiler nenhum, mas de maneira que faça sentido para quem já assistiu ao filme, tentei escrever minha livre interpretação do filme de Jordan Peele e estrelado pela Lupita Nyong'o, Nós.


Quando desce pela toca do coelho branco, ou quando atravessa o espelho, Alice encontra num mundo escondido versões deturpadas e caricaturais das pessoas que conhecia na superfície. A obra de Lewis Carroll sempre carregou consigo a alusão de um mergulho no próprio inconsciente, nos desejos e medos profundos, nas insanidades retraídas da negação. Como indivíduos ou como sociedade, não podemos apenas mascarar os erros cometidos, dar a eles uma nova demão de tinta e dizer “pronto, está resolvido”. Não basta apenas admitir que se errou no passado, pois admitir sem reparar não é reconhecer o erro - e erros que você não consegue reconhecer, sempre voltam a aparecer no caminho, e como você não sabe como se parecem, volta a cometê-los.

Tais quais as vitórias, os erros também são parte de quem somos Nós. Fugir dos erros é, em retrospecto, fugir de si mesmo. Tanto o indivíduo quanto o país que apenas admite seu passado, mas não o repara e não reconhece os erros nele, está fadado a vivê-lo de novo. Quanto mais foge, quanto mais nega, mais profundos, densos e insanos se tornam os seus erros, fermentando sob a superfície. Um caldo grosso e violento feito de Nós mesmos, pronto para esguichar para fora da pele ao menor sinal de ruptura, vermelho como sangue.

Mas reparar e reconhecer um erro não é deixá-lo definir quem você ou Nós somos. Muito pelo contrário, é se libertar dele. Como pessoa ou como país, você se volta para dentro, desce até onde escondeu o problema e o enfrenta. O único modo de olhar para um erro e reconhecê-lo, mais do que isso, o único modo de olhar para um erro e não enxergar mais o próprio rosto nele, é encarando-o nos olhos. Clichê? Sim, mas hoje um clichê necessário. Somente assim, cortamos o cordão umbilical criado pela negação e pela fuga entre o erro e nós mesmos, eficiente como o fechar ágil e afiado de uma tesoura de costura.

De outro modo, qualquer pequeno corte faz sangrar um filete grosso desse sangue pressurizado sob a pele. Qualquer porta que se abre, faz o passado saltar para fora, violento, se estendendo de costa à costa numa corrente de erros, todos de mãos dadas, como se fossem as veias cheias de sangue inocente não reconhecido, não reparado.

A História tece a sua teia irregular, mas repleta de padrões, como as patinhas habilidosas de uma aranha, cujo número que as enumera, o oito, também simboliza o infinito. Um infinito de padrões repetidos, uma Dona Aranha subindo pela parede, derrubada pela chuva forte e voltando a subir, de novo, e de novo e de novo. Um assovio ecoando no escuro. Aqui, o indivíduo, a realidade política atual e um filme de terror convergem. Os genocídios do passado, os erros não sanados, os monstros no subsolo e os terrores do agora, de repente, se parecem demais com ninguém mais ninguém menos do que apenas Nós.

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