Tentando não dar spoiler nenhum, mas de maneira que faça sentido para quem já assistiu ao filme, tentei escrever minha livre interpretação do filme de Jordan Peele e estrelado pela Lupita Nyong'o, Nós.
Quando desce pela toca do coelho branco, ou quando atravessa o espelho, Alice encontra num mundo escondido versões deturpadas e caricaturais das pessoas que conhecia na superfície. A obra de Lewis Carroll sempre carregou consigo a alusão de um mergulho no próprio inconsciente, nos desejos e medos profundos, nas insanidades retraídas da negação. Como indivíduos ou como sociedade, não podemos apenas mascarar os erros cometidos, dar a eles uma nova demão de tinta e dizer “pronto, está resolvido”. Não basta apenas admitir que se errou no passado, pois admitir sem reparar não é reconhecer o erro - e erros que você não consegue reconhecer, sempre voltam a aparecer no caminho, e como você não sabe como se parecem, volta a cometê-los.
Tais quais as vitórias, os erros também são parte de quem somos Nós. Fugir dos erros é, em retrospecto, fugir de si mesmo. Tanto o indivíduo quanto o país que apenas admite seu passado, mas não o repara e não reconhece os erros nele, está fadado a vivê-lo de novo. Quanto mais foge, quanto mais nega, mais profundos, densos e insanos se tornam os seus erros, fermentando sob a superfície. Um caldo grosso e violento feito de Nós mesmos, pronto para esguichar para fora da pele ao menor sinal de ruptura, vermelho como sangue.
Mas reparar e reconhecer um erro não é deixá-lo definir quem você ou Nós somos. Muito pelo contrário, é se libertar dele. Como pessoa ou como país, você se volta para dentro, desce até onde escondeu o problema e o enfrenta. O único modo de olhar para um erro e reconhecê-lo, mais do que isso, o único modo de olhar para um erro e não enxergar mais o próprio rosto nele, é encarando-o nos olhos. Clichê? Sim, mas hoje um clichê necessário. Somente assim, cortamos o cordão umbilical criado pela negação e pela fuga entre o erro e nós mesmos, eficiente como o fechar ágil e afiado de uma tesoura de costura.
De outro modo, qualquer pequeno corte faz sangrar um filete grosso desse sangue pressurizado sob a pele. Qualquer porta que se abre, faz o passado saltar para fora, violento, se estendendo de costa à costa numa corrente de erros, todos de mãos dadas, como se fossem as veias cheias de sangue inocente não reconhecido, não reparado.
A História tece a sua teia irregular, mas repleta de padrões, como as patinhas habilidosas de uma aranha, cujo número que as enumera, o oito, também simboliza o infinito. Um infinito de padrões repetidos, uma Dona Aranha subindo pela parede, derrubada pela chuva forte e voltando a subir, de novo, e de novo e de novo. Um assovio ecoando no escuro. Aqui, o indivíduo, a realidade política atual e um filme de terror convergem. Os genocídios do passado, os erros não sanados, os monstros no subsolo e os terrores do agora, de repente, se parecem demais com ninguém mais ninguém menos do que apenas Nós.
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