segunda-feira, 8 de julho de 2019

CRÍTICA: HOMEM-ARANHA: LONGE DE CASA


Ainda absorvendo o desfecho dramático concretizado em Vingadores: Ultimato, me consolei na constatação de que não tinha outro tom para amarrar os mais de dez anos do universo Marvel nos cinemas, senão aquele que foi trazido pelos irmãos Russo para a última reunião desses super-heróis. Cheio de reverência e pesar, o filme-evento liderado por Tony Stark e seus camaradas de capa, escudo e martelo (por aí vai) foi repleto de ação e energia, mas também de gentileza e sensibilidade, honrando assim todos os personagens que acompanhamos por quase uma década. Portanto, é com felicidade (e rindo bastante) que pude constatar Homem-Aranha: Longe de Casa jogando toda essa solenidade pela janela quando, já nos primeiros 3 ou 5 minutos de projeção, resolve recapitular as perdas e o massacre perpetrados por Thanos de maneira absolutamente irreverente e debochada, assim declarando que a narrativa faria jus à personalidade inocente e juvenil do seu protagonista.


Retomando os eventos alguns meses após o final de Ultimato, a trama joga Peter Parker (Tom Holland) de volta na vida escolar 5 anos depois de ter desaparecido da face da Terra, algo que ocorreu à maioria de seus amigos e colegas também. Agora chamado de “blip”, esse intervalo de tempo que existiu entre os que foram estalados por Thanos e os que ficaram para trás envelhecendo normalmente ainda é um problema em processo de resolução, o que pode ser notado pela existência de ONGs como aquela que é liderada pela tia May (Marisa Tomei), que arrecada fundos para ajudar na reinserção social dos “blipados”. É nesse contexto que o jovem herói decide se desapegar do uniforme de Aranha para tirar umas merecidas férias na Europa, numa excursão de colégio. Um plano, claro, frustrado pelo surgimento de um perigo imediato que só poderá ser resolvido por um herói-Vingador.



Chamados de Elementais, seres imensos e destrutivos formados de terra, água, ar ou fogo parecem surgir de outras dimensões sempre convenientemente próximos ao garoto, atrapalhando seus planos de conseguir um tempo a sós com MJ (Zendaya). E a coisa toda só não parece impossível de resolver porque Nick Fury (Samuel L. Jackson) surge no encalço de Parker, trazendo consigo um novo herói para ajudá-lo na tarefa de combater esses monstros: Mysterio (Jake Gyllenhaal). E, bom, isso é uma parte do filme.


A partir de certo ponto, o roteiro dá uma guinada e vira a trama de ponta cabeça. Obviamente, não vou revelar nada do que ocorre depois disso agora (mais adiante, com os devidos avisos, eu comento alguns spoilers). Por enquanto, basta dizer que as coisas ficam bem mais interessantes e tudo o que veio antes e vem depois é enriquecido pela revelação. Isso, por si só, já torna Longe de Casa um filme mais ambicioso do que era De Volta ao Lar - e mais arriscado, por consequência. Se no longa anterior tínhamos um misto de ação e high school movie no estilo das produções de John Hughes, essa continuação se “inspira” descaradamente nos 007 (e, por tabela, nos Missão: Impossível também), com direito a passagens por diversos pontos turísticos, sempre introduzidos pelos emblemáticos letreiros das missões de James Bond, que identificam o local onde a ação se desenrolará.


Ainda dirigido pelo mesmo Jon Watts que comandou a aventura anterior, Longe de Casa adota os arquétipos do sub-gênero de ação da espionagem internacional, porém, sem abandonar o clima Curtindo a Vida Adoidado / Gatinhas e Gatões / Mulher Nota 1000. E quando me refiro à ambição do projeto, é dessa mistura que eu falo, pois a sequência de De Volta ao Lar consegue ser ainda mais entregue à comédia do que antes, sem medo de soar meio caricata ou pastelão. Aliás, os momentos em que o filme perde suas amarras com a verossimilhança e abraça tanto o cômico quanto o absurdo das sequências de ação resultam nos pontos altos da narrativa. Um bom exemplo é o momento que mergulha no cinema de Charles Chaplin e Buster Keaton ao enfocar a desastrada iniciativa de Peter para impedir uma torre de sino de cair sobre seus amigos, e outro chega quando um prédio abandonado se converte num certo cenário volátil que se move de maneira ridiculamente complexa, abrigando uma angustiante coreografia de luta.


Isso tudo colabora bastante para criar uma atmosfera de fantasia que deixa alta a suspensão de descrença, evitando que o espectador venha a questionar conceitos atirados pelo caminho, como as multidimensões. Então, quando ouvimos Nick Fury explicar de onde veio Mysterio, “Ele é da Terra, só que não a nossa Terra, o estalo [de Thanos] fez um buraco na nossa dimensão”, a reação fica mais para “Ah, ok, faz sentido” do que “Mas que p***a?”. E um dos melhores e mais espertinhos dos comentários feitos pelo filme (sejamos honestos, um dos mais afiados de todo o MCU até hoje), reside no modo como o roteiro e a direção utilizam essa ausência de questionamentos sobre os conceitos fantasiosos apresentados - porém, só comentarei sobre isso ao final do texto.


Além de tanto, o roteiro de Chris McKenna e Erik Sommers (repetindo a função) se aproveita do estrutura de road movie para manter a sensação de que a trama está andando e coisas estão sempre acontecendo - o que não deixa de ser verdade, pois cada cena parece obrigada a abrigar um acontecimento chave. Longe de Casa é, portanto, um filme de ritmo (não dá pra dizer que o filme para, algo que poderia ser benéfico de vez em quando), e a trilha de Michael Giacchino assume bem o seu papel nessa tarefa. Se o compositor não cria nenhum tema marcante para o Aranha e nem se utiliza dos temas anteriores compostos para o personagem (como fez em De Volta ao Lar), ao menos ele consegue escalar a ação e torná-la empolgante, mesmo quando Jon Watts falha pontualmente em dirigir as sequências de luta e perseguição com alguma inspiração - embora tenha aptidão para fazer comédia visual e criar momentos que chamam a atenção pela composição de quadro, quando se trata do embate corpo a corpo o diretor ainda se perde bastante e não consegue tornar esses momentos interessantes. Repare como, normalmente, são os eventos que se desenrolam paralelamente à ação que acabam roubando a cena. Uma das exceções é quando Watts, McKenna, Sommers e Giacchino se juntam para entregar a hilária situação envolvendo um drone militar e um micro-ônibus cheio de adolescentes.


Ok, a partir daqui preciso discutir o longa com spoilers. Então, se você não quer saber de maiores detalhes da trama, sugiro que pare de ler e volte só quando já tiver assistido ao filme.


Vamos lá:

O aspecto que mais chama a atenção na virada de trama que revela Mysterio como um vilão trapaceiro (algo que já era sabido pelos ávidos leitores das HQs), é como o roteiro joga a passividade do espectador contra ele mesmo. Por se tratar de um filme de super-herói mirabolante, é fácil aceitar besteiras como “ele veio de outra dimensão e ponto”. Quando nos é contado que as coisas não são tão simples assim, e que Mysterio inventou toda essa lorota, a estratégia do vilão se converte num comentário sobre a própria instabilidade do conceito do que é a “verdade” em tempos de absurdo - ou seja, sim, vamos falar de Fake News, pois o contexto do MCU nos permite uma comparação (óbvia) com a nossa própria realidade. 



Se no universo da Marvel o surgimento de ameaças extraterrestres, de heróis e vilões superpoderosos e viagens no tempo e tudo mais nos deixaram prontos para aceitar o conceito de um multiverso, mesmo ele sendo apresentado de qualquer jeito por um personagem desconhecido e sem credibilidade nenhuma, aqui, do lado de cá da tela, o mesmo ocorre com o bombardeamento de polêmicas; Impeachment/golpe, prisão de ex-presidente, prisão de presidente da Câmara de Deputados, escândalos de corrupção, tragédias como o rompimento de barragens etc., foram elementos que desestabilizaram tanto a rotina e a realidade do brasileiro, que a própria instabilidade se tornou o “normal” - e por isso é tão fácil que as pessoas acreditem em fake news de WhatsApp ou em perfis como O Pavão Misterioso (risos). Essa falta de parâmetro gerada pelo caos político e social impede que as pessoas questionem o absurdo (já que o absurdo virou regra). Assim, não surpreende que elas não vejam muito problema em eleger um presidente racista, homofóbico e misógino, ou que não fiquem contra um juiz atuando de maneira corrupta para condenar um rival político.


E eu não estou tirando isso da minha cabeça porque sou um crítico de cinema esquerdalha, Lula Livre e tereréu. Olha só, eu até sou, mas a temática é muito óbvia no filme: não só o próprio Mysterio tem seus poderes baseados em ilusões que mascaram a realidade, como ele também surge depois como o autor de uma enorme fake news (e o seu emissário não poderia ser mais apropriado). Não esquecendo que os EUA sofreram tanto quanto nós brasileiros por causa das notícias falsas - lembre que se nós somos presididos por Bolsonaro, eles, coitados, são presididos pelo Trump. Aliás, a cena em questão faz parte de uma das duas que chegam nos pós-créditos, e embora Longe de Casa seja divertido e empolgante, seus dois melhores momentos estão ali, depois que o filme termina.


Pois bem. Com ou sem comentário político, Homem-Aranha: Longe de Casa ainda se beneficia demais do carisma de Tom Holland, que continua a viver o herói com uma inocência e doçura contagiantes, que agora ganham a companhia perfeita em Jake Gyllenhaal, uma presença de tela sempre cativante e eficiente em preencher seus personagens com energia e vivacidade - além da dubiedade esperada de um cara que se chama “Mistério”. Ainda em tempo, também parece coerente que, com todo o comovente arco de Peter envolvendo a superação da morte de Tony Stark, o vilão deste filme seja outra vítima das medidas egocêntricas e expansivas do Homem de Ferro, assim como o Abutre, do filme anterior, também era - é quase como se o Aranha estivesse fadado a ter como algozes pessoas que foram, de alguma maneira, destruídas por seu antigo mentor. 


O que me leva a Happy (Jon Favreau), que ganha um dos instantes mais comoventes de todo o filme ao lado do protagonista - o que prova que o longa se beneficiaria muito de alguns respiros no ritmo. E vê-lo (Happy) admirando o jovem herói com um olhar nostálgico remete tanto a sua amizade com Tony, já que ele obviamente enxerga traços do amigo no adolescente, como também ao fato de que Favreau poderia estar olhando para um resquício de onde tudo começou, já que ele foi o diretor dos dois primeiros Homem de Ferro e, portanto, o cara que deu o pontapé inicial a esse universo que, com esse segundo filme do Teioso, encerra sua terceira e mais coesa fase até agora.


P.S.: Um detalhe que achei legal compartilhar, são as iniciais na maleta de viagem de Peter. De aspecto antigo, a valise é marcada pelas letras BFP, as iniciais do Tio Ben.


Nota: 8/10



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