quarta-feira, 25 de setembro de 2019

CRÍTICA: BACURAU


Uma forasteira extravagante chega numa cidadezinha do interior do nordeste e pergunta:

Quem nasce em Bacurau, é o quê?

E nesse momento, uma criança, revestida da aura de inocência e sinceridade que as crianças normalmente têm, responde na lata:

É gente!

A Bacurau imaginada por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles é uma vila fictícia assolada por um mistério inquietante: sua localização sumiu do mapa. Quem virá, portanto, socorrer esse povo do sertão quando uma ameaça cerca o vilarejo? Pois se engana quem acha que essa gente de Bacurau ficaria esperando por ajuda milagrosa vinda “dos estrangeiro”. Afinal, esse povo, que usa a igreja no centro da cidade como depósito, não parece do tipo que espera por intervenção divina. O coração pulsante dessa comunidade é outro prédio, um que, ironicamente, os forasteiros decidem recorrentemente ignorar: o museu que guarda a História de Bacurau.

E munidos com o conhecimento dessa História, os cidadãos desse lugar esquecido pelo resto do mundo se revoltam como brasileiros - não como brasileiros por ofício, daqueles que ainda enxergam esse pedaço de terra como colônia, como quintal de gringo. Não, se revoltam como brasileiros filhos desta nação, sem vergonha da sua trajetória, mesmo que humilde, mesmo que segregada, mesmo que, no passado, escravizada.

Então Bacurau não é um filme com uma “crítica social foda”, não é, tampouco, um retrato do nosso Brasil. Bacurau é um ato violento e catártico de revolta, um grito de afirmação que vem sendo sufocado na garganta daqueles que são brasileiros com orgulho, e que têm presenciado sua nação sendo mutilada todos os dias pelos covardes vira-latas que se vendem para a bandeira que tiver mais estrelas - não por acaso, os mesmos que negam a nossa História.

Pois é, não são necessários os rodeios para chegar no nome de Jair Bolsonaro. Porém, é sintomático perceber que, apesar de a produção ter encerrado suas filmagens no começo de 2018, Bacurau já conseguia prever o momento sombrio a que chegaríamos dentro de mais ou menos um ano - qualquer um com bom senso conseguia. Então, quando vemos uma criança tombar morta no filme de Mendonça e Dornelles, é impossível, hoje, não lembrar que do lado de fora da sala de cinema os familiares de Ágatha Félix, que tinha apenas 8 anos de idade, estão enterrando o corpo de uma menina que tinha toda uma vida pela frente. O motivo? Uma ação policial fruto da política de extermínio nas favelas perpetrada pelo governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, que se elegeu no encalço do discurso fascista de Bolsonaro. Não muito diferente do intento por trás dos vilões desse longa-metragem.

É curioso, porque, quando lançou Aquarius no Festival de Cannes em 2016, o cineasta Kleber Mendonça Filho, Sônia Braga e o resto da equipe daquele projeto se manifestaram num dos tapetes vermelhos mais visados do mundo sobre o golpe de estado que, à época, estava sendo cometido contra a presidenta Dilma Rousseff - e hoje admitido até mesmo pelo golpista mor, Michel Temer. Afinal, o filme estava alinhado às sutis trapaças parlamentares que eram perpetradas nos bastidores do governo naquele ano, pois ilustrava os desníveis sociais e os jogos de poderes com metáforas elegantes, descortinando na rotina da protagonista Clara (Braga) um sistema político viciado e falido que implorava por uma mudança de atitude, especialmente vinda da classe média, acomodada em um espaço confortável entre as injustiças e o abuso de influência. Essa mudança nunca chegou, ao menos, não em tempo. O que chegou foi Bacurau, que no Brasil de 2019, já não encontra mais espaço para ser sutil ou elegante sobre o que tem a dizer.

Parafraseando um certo grupo de heróis por aí: não conseguindo proteger o Brasil, a classe artística agora parece disposta a vingá-lo.

Inspirados num cinema de inquietude, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles se referenciam aberta e declaradamente no cineasta John Carpenter, que empresta seu nome à escola de Bacurau, João Carpinteiro. Além disso, a faixa Night, composta pelo próprio Carpenter e jamais utilizada antes, é colocada em prática para ilustrar os processos de luto da pequena comunidade. Como nos filmes do diretor, responsável por Enigma do Outro Mundo, Fuga de Nova York e Assalto ao 13º Distrito, há uma força maléfica se apoderando e encurralando um grupo de protagonistas que têm tudo para perder essa briga.

Aliás, é parte da genialidade de Bacurau (e vou empregar o termo “genial” aqui sem medo algum de estar exagerando) que o filme se utilize dos preconceitos do espectador para criar tensão e, depois, a catarse tão almejada. Quem mergulha na primeira hora do longa-metragem dificilmente consegue prever aonde aquilo tudo vai dar, e isso se deve, em parte, ao estereótipo bem cimentado na cultura popular do nordestino humilde e aculturado. A imagem que temos do povo do sertão é de uma população pobre, faminta e sedenta por água e por uma existência digna. É o Velho Oeste brasileiro, onde impera a lei do mais bem armado e onde não há espaço para as sofisticações políticas de histórias mais urbanas.

Quem tentar se manter fiel a esse estereótipo, vai descobrir que Bacurau tem outros planos para a sua trama. E conforme vamos chegando ao violento e satisfatório desfecho dessa maluquice concebida por Mendonça e Dornelles, olhamos em retrospecto para o filme e percebemos que a placa de entrada para a cidadezinha, antes tão convidativa, agora soa mais como uma ameaça (“Se for, vá na paz”), tal como os insistentes convites para que os forasteiros conheçam o museu histórico do vilarejo (“Cês não vão conhecer o museu não? É esse aqui ó”). Não por acaso, os diretores usam uma câmera com o ângulo oblíquo (os famosos Dutch Angles, sempre indicando algo fora do comum) para retratar a primeira vez que um personagem entra no prédio do museu, alardeando que a partir daqui, a perspectiva que tínhamos desse povoado vai mudar drasticamente.

E muda. Olhando-se de trás para frente, percebemos que a gente de Bacurau, ao contrário do que reza a lenda popular sobre os nordestinos, recusa o assistencialismo barato de um prefeito em busca de votos, não se vendem por qualquer doação e se organizam de maneira extremamente comunitária na hora de dividir os bens. Além disso, sem perder os traços culturais da fala ou mesmo a humildade de suas casas e das suas vestimentas, os habitantes não deixam de ser sofisticados e perspicazes. E se certos estrangeiros tentam disfarçar um drone como um disco voador, achando que assim vão assustar os habitantes de Bacurau, o tolo disfarce é logo desmascarado sem muita titubeação por Damiano (Carlos Francisco), que não demora a entender o que se passa, contrariando a expressão popular “eu não durmo de tanga”, uma vez que ele claramente tem alguma ancestralidade dos povos originários do Brasil, ao menos culturalmente - o personagem é adepto do naturalismo (anda sem roupas em suas terras), do cultivo e da preservação de plantas e ervas em suas terras, e além disso, seu barraco se assemelha a uma oca, feita com paredes de barro e telhado de palha.

É essa iconicidade que aproxima ainda mais Bacurau de um sentimento de revolta contra um colonialismo moderno - sim, a nudez de Damiano pode soar engraçada, mas a naturalidade com que é tratada ao lado da casa de barro funcionam como símbolos escancarados da temática. Aliás, o diálogo estabelecido entre os eventos do filme com a atualidade do país tornam o letreiro que abre a projeção e situa o espectador “alguns anos no futuro”, mais num lamento do que num recurso com função narrativa.

Aliás, Mendonça e Dornelles dominam completamente a relação espectador e narrativa dos segundos iniciais ao poderoso take final. Através do desconforto e da estranheza, os realizadores nos levam da vastidão estrelada do espaço sideral para um mergulho na órbita terrestre, chegando num nordeste inóspito onde um caminhão pipa cruzando o cerrado surge atropelando caixões caídos na estrada.

Recheado dessas imagens inquietantes, Bacurau mantém o espectador instigado muito antes de estabelecer sequer sobre o que é a trama. E prova de que os diretores e roteiristas têm tamanha segurança sobre esse poder, é que eles se dão ao luxo de revelar o “assunto” do filme somente com mais de uma hora de duração. E isso não quer dizer que “nada acontece” na primeira hora de projeção. De jeito nenhum, pois Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles usam esse tempo para apresentar os personagens habitantes do lugarejo e, desse modo, apresentar a sua protagonista: a própria Bacurau.

Sim, eu sei que é um clichê dizer que tal lugar é o protagonista de tal história. Até porque isso nem sempre é verdade, não passando de uma muleta de texto para expressar um sentimento passado pelo filme/livro/seriado etc. Mas aqui é bem verdade que a pequena, desconfiada e irritadiça Bacurau é mesmo uma personagem cuja personalidade é composta pelas diversas características representadas com cada uma das figuras de lá - e aqui é até irônico reparar na semelhança em inglês (justo o inglês, que tem papel importante na trama) entre as palavras “característica” e “personagem”, characteristic e character respectivamente.

Portanto, os diretores se preocupam apenas em sugerir quem são os personagens que compõem Bacurau. Ficam-se mais indagações sobre eles do que definições. Por exemplo, qual a relação que tinha Domingas (Braga) com a falecida Carmelita (Lia de Itamaracá)? Pacote (Thomas Aquino) é um justiceiro ou um matador de aluguel? E Lunga (Silvero Pereira), que trajetória o levou de um promissor escritor para ser um guerrilheiro contra facções coronelistas no sertão? Ao invés de incomodar, esses mistérios se tornam parte do charme do longa-metragem, pois sugerem habilmente uma rede complexa de acontecimentos, arcos de vida e personalidades que encobrem o vilarejo com um véu de sofisticação muito apropriado, já que termina de quebrar por completo a preconceituosa concepção de que essa comunidade é menos digna de ser preservada do que qualquer outra grande cidade incrustada por acontecimentos relevantes e intervenções artísticas e culturais.

Ou seja, é um recurso que humaniza um tipo de lugar e povo que, por estereótipo, é desumanizado por tradição.

E em última análise, é esse esforço que nos coloca ao lado daquelas pessoas e nos insere naquela comunidade. A partir de certo ponto, e esse ponto é difícil de ser definido, passamos a fazer parte de Bacurau, sentir a sua dor, vibrar as suas vitórias. E no final, quando alguém pergunta, frente a um ato de extrema violência, se “o Lunga exagerou?”, respondemos, mesmo que de coração, em uníssono com a personagem de Teresa (Barbara Colen): “não”.

Nota: 10/10