quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

A VIAGEM


     Famosos por trazerem às telonas a trilogia Matrix, os irmãos Andy e Lana Wachowski juntam-se aqui com o diretor alemão Tom Tykwer (de Corra, Lola, Corra) para realizar um projeto que muito provavelmente será encarado de duas maneiras bem distintas: ruim, confuso, longo, estranho e forçado; ou eficiente, dinâmico, diferente e fantasioso. A questão, porém, é que, pro bem ou pro mal, é inegável que esse A Viagem é um filme ambicioso. E neste caso eu reforço: ambicioso ele é. Tanto que ao seu término, em meio à absorção da fantástica obra que acabara de assistir, o único pensamento negativo que me passava pela cabeça em relação ao filme era: "Como eu faço uma sinopse pra isso?".

     
     Adaptado do livro homônimo de David Mitchell pelo próprio trio responsável pela direção, o longa conta seis histórias diferentes, todas desenvolvidas paralelamente. Porém, cada uma dessas tramas se passa em uma época absurdamente diferente da outra, sendo (em ordem cronológica) a primeira sobre um advogado em meados do século dezenove preso em um barco onde descobre escondido um dos escravos cuja compra está negociando para o seu sogro. A segunda acompanha a trajetória de um jovem músico homossexual durante a década de quarenta que se refugia sob a tutela de um respeitado compositor para buscar inspiração para uma composição própria, enquanto a terceira conta a investigação de uma persistente jornalista no início da década de setenta tentando incriminar uma megacorporação enquanto corre por sua vida de um assassino contratado para matá-la. A quarta nos apresenta nos dias atuais a um velho editor que devido a diversas complicações acaba preso por engano em um asilo comandado por uma enfermeira linha dura. Na quinta conhecemos um futuro Cyber-Punk na Coréia do Sul, comandada por uma ditadura rigorosa que culmina na fuga de Sonmi-451, uma escrava criada em laboratório para servir a uma grande rede de lancherias, um fato que motiva o início de uma revolução que usará a figura de Sonmi como messias de sua causa. E na sexta e última trama somos introduzidos a um futuro pós-apocalíptico onde uma tribo pacífica, que venera a então Deusa Sonmi, é assombrada por violentos canibais que vivem ao pé da montanha até que a chegada de uma Presciente, uma humana dotada de conhecimentos dos tempos antigos, muda a percepção de um dos membros da tribo levando-o a ajudá-la na investigação de uma possível salvação para a sua espécie.


     Seis tramas, seis épocas diferentes, desenvolvidas paralelamente e um elenco fixo para viver em cada uma delas personagens diferentes. Assim, podemos ver Tom Hanks interpretar desde o protagonista da sexta história, Zachry, até um mero coadjuvante fazendo ponta como um atendente de hotel na segunda, assim como Halle Berry vivendo a jornalista Luisa Rey, figura central da terceira trama, e também uma figurante entre os muitos escravos na primeira. E por isso (e também, claro, por este ser um dos temas recorrentes em todos os segmentos) pode-se interpretar que cada uma daquelas figuras nas quais se repete o ator, são reencarnações da mesma pessoa, reforçando o chavão do filme "tudo está conectado". E se assim for encarado, pode-se dizer, por exemplo, que o velho editor Timothy Cavendish acabar preso num asilo sob a tutela de uma verdadeira megera, é simplesmente reflexo de seu comportamento em uma vida passada onde era o respeitado compositor Vyvyan Ayrs, que manteve em cativeiro o jovem músico Robert Frobisher (Ben Whishaw) para roubar-lhe suas composições. Assim como os personagens vividos por Hugo Weaving parecem destinados a serem catalisadores de maldade e os de Jim Sturgess representarem sempre uma força de mudança ou salvação para outros personagens. 


     E um dos maiores acertos de A Viagem é nunca tentar catequizar seu espectador em relação a este elemento (a reencarnação), claramente vertente da hoje popular doutrina Espírita, apresentando-o como um conceito fantástico de seu universo, não muito diferente do que faz O Senhor dos Anéis ao explicar como a força vital do vilão residia presa dentro de um pequeno anel dourado, ou de Harry Potter quando ficamos sabendo das regras mágicas que regem aquele mundo. Isso torna o longa muito mais digerível para qualquer espectador, que pode ser pegar catando essas nuances e detalhes que tornam o universo do filme muito mais amplo e complexo. Outro acerto do trio de diretores/ roteiristas é manter este conceito assim mesmo, como apenas um detalhe. Uma curiosidade a ser notada nas histórias, podendo-se tranquilamente ver e entender todos os seis segmentos do longa sem recorrer a esta explicação. Claro que atendo-se a ela, o filme fica muito mais divertido, e procurar as influências de uma trama na outra torna-se parte da experiência.


     E tendo cada ator se disposto a representar inúmeros papeis diferentes, o elenco, escolhido a dedo, consegue se sair fantasticamente bem ao viver figuras diversas. Tom Hanks, claramente o mais versátil no elenco, se destaca no segmento onde consegue encarar com a caricatura necessária o escritor barra pesada Dermot (cuja única cena tem um final inesperado, violento e hilário) convencendo também como o bom e receoso Zachry em outro momento. Porém, ainda que Berry, Sturgess, Sarandon e até mesmo Hugh Grant em menor grau estejam divertidos e cativantes em seus papeis/aparições, é realmente Jim Broadbent e Hugo Weaving que chamam mais a atenção sempre que em cena. O primeiro por compor de formas distintas seus três principais personagens, personificando o rabugento Capitão Molyneux, passando pelo desprezível compositor Vyvyan e chegando ao seu melhor no atrapalhado e divertido Timothy, enquanto o outro, Weaving, merece um sorriso de canto de boca por cada um dos tipos de vilão (alguns são apenas pessoas malvadas) que encarna, com destaque óbvio para o assassino de aluguel Bill Smoke e a impagável Enfermeira Noakes. 


     E sim, graças a um impressionante trabalho de maquiagem (que às vezes passa um pouco do ponto), não só todas as figuras vividas por cada ator são facilmente distinguíveis umas das outras, como também é possível ver o elenco trocar constantemente de gênero, etnia e idade. Sendo os trabalhos mais chamativos, nesse aspecto, aqueles feitos em: Sturgess, que é transformado no Sul Coreano Hae-Joo Chang; Weaving em Noakes; e Hanks no escritor Dermot. Aliás, toda a parte técnica do filme é admirável, da direção de arte aos figurinos, os efeitos, a fotografia, a trilha, tudo ajuda a diferenciar claramente cada um dos seis segmentos do longa, sendo quase impossível confundir um com o outro tamanha a capacidade das equipes técnicas em conceder identidade a cada um deles, seja na fotografia e nos figurinos escuros do futuro na Coréia do Sul, na palheta de cores básicas escolhida para compor os sets na década de setenta ou nas cores neutras e frias que tornam a realidade do jovem músico Robert tão pesada quanto ele a descreve em suas cartas.


     Porém, se nos bastidores de A Viagem há um astro, este é o montador Alexander Berner, que vence o pesadelo de unir estas seis tramas de uma forma homogênea, consistente e ritmada, alternando momentos de calmaria em alguns segmentos, com uns de maior tensão em outros, mantendo assim um ritmo impecável que mantém cativo o espectador durante as quase três horas de duração do longa. Sabendo também fluir entre uma e outra de maneira orgânica, Berner aposta quase sempre em confluências temáticas para unir suas sequências, como, por exemplo, quando mostra um personagem indo buscar outro e corta para uma cena em outra das tramas onde há uma menininha batendo em uma porta. Assim, nem mesmo a diferença de gêneros entre as histórias (e sim, cada uma possui o seu tom bem definido, como o thriller, a comédia e a ficção-científica) acaba soando como uma quebra de clima, sendo, pelo contrário, um dos fatores que ajudam a aprofundar as dimensões do longa em si. E reclamar da falta de profundidade de cada segmento em particular não vem ao caso, pois se levado em conta todos os personagens vividos por cada ator, é possível estabelecer uma linha (como fiz acima) e identificar uma personalidade única que se apresenta em várias facetas.


     E no fim, para aqueles que mantiveram a atenção, o filme será com certeza um prato cheio a ser analisado e interpretado, pois mal citei, por exemplo, certa marca de nascença em forma de cometa que aparece em pelo menos um personagem de cada segmento (que prefiro encarar como sendo sempre a pessoa catalisadora de eventos de cada um deles). Há temas óbvios que se repetem em cada uma das tramas é claro, todas elas parecem de algum modo falar sobre a libertação, a luta pela subversão de um sistema vigente ou pela igualdade social, temas, aliás, recorrentes na filmografia dos Wachowski. Mas acredito que A Viagem ainda possua muitas outras camadas a serem descobertas por um espectador mais paciente e compreensivo. E um filme que consegue fazer com que seu público pare para pensar sobre ele, é sempre, em algum grau, bem sucedido.


NOTA: 10/10


4 comentários:

  1. Mto boa a resenha, mas infelizmente continuei sem entender as histórias, pq tive a impressão de que elas se conectavam de alguma forma. Achei qu talvez vc fosse conseguir me elucidar a questão. Se as histórias não são conectadas então significa que as histórias são independentes?? E talvez por isso a ousadia, ao fazer um filme em que conta simultaneamente 6 histórias independentes??

    Bjs, Mi

    www.recantodami.com

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    1. Mas eu disse bem pelo contrário, que elas se conectam de várias formas. dei exemplos ainda. E por fim, disse ainda que procurar as influências de uma nas outras era parte da diversão de se assistir ao longa.

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  2. Este é um filme muito diferente com certeza e é para ser visto e revisto, e, para quem gosta de pensar, me desculpem os que gostam apenas de um entretenimento sem mais profundidade. Cinema é isso, um filme desses ou você entende ou vai passar a vida sem entender. Cada um tem sua própria interpretação. Eu entendi exatamente como você colocaste e posso assegurar me diverti tentando achar as conexões.Ótima crítica

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