quinta-feira, 14 de setembro de 2017

O JANTAR



Sabe aquela máxima “o livro é sempre melhor do que o filme”? Balela. Essa falácia se baseia na lógica de que um texto, por ter mais espaço de descrição, é mais rico e aprofundado que um produto audiovisual, normalmente limitado pelo tempo. Errado. A linguagem cinemática possui tantos recursos quanto a literatura. Pensem na fotografia, na trilha, na montagem, no desenho de som, na direção de arte, no figurino, na maquiagem, no roteiro, na montagem, nos atores. São tantas combinações possíveis desses elementos, que é perfeitamente plausível que um filme, com apenas um plano, conte mais ao espectador do que um livro faria. Dito isso, é triste quando, apesar de dominar a narrativa audiovisual, um filme se mostra incrédulo sobre o seu potencial. Tomemos como exemplo este O Jantar, que gira em torno de quatro pessoas se encontrando em um restaurante refinado para discutir o comportamento de seus filhos.



Paul (Steve Coogan) é um professor de História que lida com crises de depressão e é casado com Claire (Laura Linney), que no passado enfrentou um câncer. Os dois são pais de Michael (Charlie Plummer), que junto com os dois primos cometeu algum tipo de erro que será desvendado com o passar da trama. No intuito de discutir o assunto, o casal se reúne então com Stan (Richard Gere), irmão de Paul e Deputado concorrendo a Governador, e Kate (Rebecca Hall), sua esposa e madrasta dos primos de Michael. O filme, portanto, gira em torno deste conflito e no efeito que tem nesses quatro personagens. O diretor, Oren Moverman, conduzindo o próprio roteiro adaptado do livro de Herman Koch, constrói cada uma daquelas figuras e suas nuances para que compreendamos como e porque vão reagir aos desdobramentos da história - algo fundamental para o espectador imergir naquela discussão, uma vez que, aos poucos, percebemos que o erro cometido pelos garotos é realmente terrível e, ainda por cima, tem implicações sociais e, portanto, ideológicas.


É uma característica do filme, então, que aquelas figuras tenham conformações próprias. Mas é uma característica dos personagens os detalhes dessas nuances. Explico: o longa adota obviamente Paul como protagonista - o projeto já abre com uma narração oriunda de seus pensamentos, e a percepção de alguns momentos parece inteiramente ligada à subjetividade do homem, como no instante em que ouvimos a leitura mental que ele faz de um livro se sobrepor aos ruídos do entorno. Assim, compreendemos que o personagem, por exemplo, tem uma consciência histórico-social, naturalmente aprendida de seus anos como professor na matéria. Também captamos o potencial de Paul para se entregar às crises de depressão quando frente a um problema complicado - ao não conseguir se lembrar de um nome ele estapeia o próprio rosto, ao não achar uma resposta convincente para dar ao filho, começa a jorrar informações desconexas. Aliás, a performance de Steve Coogan é essencial na construção desta figura, e se alia perfeitamente a direção de Moverman ao viver o professor constantemente desconfortável dentro do restaurante, que surge escuro, iluminado por luzes baixas puxadas para o vermelho e, apesar de amplo, constantemente enfocado por quadros fechados e claustrofóbicos.


Peguemos agora Stan, que Richard Gere, um político que está tentando, além de se eleger Governador, passar um projeto de lei. Conforme descobrimos depois, sua emenda tem a ver com facilitar o acesso a tratamentos para pessoas que sofrem com doenças mentais, o que imediatamente nos remete a Paul, denunciando que o Deputado foi marcado pela convivência com o irmão, tendo uma preocupação genuína em não permitir que a estigmatização do problema não continue se perpetuando. O que eu quero dizer é: essas são características dos personagens, que por sua vez são importantes para que compreendamos a proposta do filme, estando aptos a debater as questões que levanta - e é precioso notar como O Jantar levanta habilmente alguns tópicos sem tomar partidos, deixando para o espectador escolher que lados vai defender. Se fosse um estudo de personagem, ou de personagens, portanto, os longos minutos que o longa investe para aprofundar a depressão de Paul se justificariam em tela. Mas O Jantar não é isso, e claramente não quer ser. Sua preocupação em investir em flashbacks que contam a crise de Paul surge como uma incredulidade do próprio filme em seu potencial narrativo. A condição do protagonista já tinha ficado clara por diversas outras formas, incluindo os momentos e elementos que citei no parágrafo anterior - sem contar o instante em que Claire, Kate e Stan discutem no centro de um aposento, enquanto Paul aparece constantemente fora de foco no fundo dos quadros, orbitando a conversa e mexendo no celular, obviamente inquieto e tentando fugir da situação, algo que podemos implicar graças à força da gramática visual da cena. Quando o teor da doença enfrentada pelo personagem é esmiuçado para o espectador, fugimos da narrativa, do foco que vinha montando, dos debates que vinha trazendo e, pior do que isso, anestesia-se o efeito das sutilezas que antes definiram tão bem essas informações para o público.


Para além disso, ao usar os flashbacks no intuito de desenhar o óbvio, o filme se sabota por associar a doença de Paul com o crime cometido pelos garotos, também mostrado pelo mesmo recurso - e que na verdade não tem nenhuma conexão com o caso. Sem contar que, embora represente uma barriga considerável no ritmo da narrativa, como aprofundamento do tema Depressão, os flashbacks são apenas uma pincelada no assunto, o que faz com que o filme pareça leviano sobre o problema.


O Jantar é um filme muito bom e que funciona na maior parte do tempo, mas é incrível como, por duvidar momentaneamente disso e da capacidade do audiovisual de ser tão profundo e complexo quanto qualquer outra linguagem, quase acabe se implodindo.



2 comentários:

  1. Essas carinhas na função de estrelinhas! <3 Na terceira carinha tu parece o David Anders. Eu não sei falar disso em termos cinematográficos, mas realmente, quando o filme explica o que ele mesmo já explicou, acaba tratando os temas de forma "leviana". Mesmo assim, lendo a resenha, acho que é um filme de que vou gostar.

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