Hoje o meu convidado é o Matheus
Pannebecker, jornalista e autor do Cinema e Argumento,
blog que ele toca desde 2007 até hoje. Atuou durante seis anos como
assessor de imprensa na Pauta – Conexão e Conteúdo, passando de estagiário a sócio, atendendo grandes eventos, como o Festival
de Cinema de Gramado. Já passaram pela sua caderneta de entrevistas nomes
como Anna Muylaert, Cecilia Roth, Juan José Campanella, Laís
Bodanzky, Marieta Severo, Marília Pêra, Rachel Griffiths, Sonia
Braga e Walter Carvalho. Também já atuou na Mínima, rádio
comandada pelo premiado cineasta José Pedro Goulart, onde produziu e
apresentou um programa semanal sobre cinema. Hoje, é Analista de
Conteúdo Pleno da UOL Edtech.
10 razões que fazem de O Animal Cordial um aterrorizante e necessário retrato do Brasil em que vivemos
Ao
receber o convite do Yuri para participar dessa importante série,
constatei que tenho visto mais filmes brasileiros do que estrangeiros
nos últimos anos. Parando para pensar nas razões que me levaram a
essa nova estatística percebo que, sim, o cinema brasileiro tem
crescido em quantidade e pluralidade, mas o que mais tem me fascinado
nessa recente safra é o número de produções que radiografam o
momento do nosso Brasil. Em boa parte dos casos, temos colocado na
tela diferentes visões e interpretações da nossa própria vida, o
que sempre considerei o maior dos presentes proporcionados pelo
Cinema.
Por
isso mesmo, escolhi para a minha participação O Animal Cordial,
uma obra brasileira, que, em formato, temática e gênero, subverte
tudo aquilo que esperamos para um filme de sua natureza. Ele não
deixa de ser um protesto: contra todos os retrocessos que vivemos, o
longa da genial Gabriela Amaral Almeida, que já era uma grande
promessa em curtas-metragens, é um grito por #EleNão, escancarando
muitas das feridas abertas do Brasil em que vivemos. E o que
considero mais brilhante no filme é transpor essas cicatrizes para o
plano do horror. “O Animal Cordial” faz jus à clássica
definição de que a realidade pode ser muito mais aterrorizante que a
ficção. Abaixo eu conto as razões!
1
- É dirigido por uma mulher em um gênero essencialmente dominado
por homens
Segundo
dados da ANCINE, apenas 19,7% dos 142 filmes brasileiros lançados
comercialmente em 2016 levam a assinatura de mulheres. Tendo apenas
isso em vista, "O Animal Cordial" já seria um caso a ser
notado. No entanto, se levarmos em consideração que essa é uma
chamada obra de "gênero", a situação é ainda mais rara.
Afinal, quantos filmes de horror dirigidos por mulheres você
conhece, inclusive em uma perspectiva mundial? Por isso, O
Animal Cordial é mesmo um ponto fora da curva e, por que não,
um (delicioso) atrevimento: ora, como assim uma mulher tem o topete
de dirigir um filme de horror? Pois Gabriela Amaral Almeida tem
mesmo, e isso é incrível, já que O Animal Cordial coloca na tela discussões que a produção brasileira, em sua
maioria masculina, raramente ousaria colocar.
2
- Utiliza o terror como metáfora social
As
doses de sangue são cavalares. O pânico é constante. Os
personagens são imprevisíveis. Mas quer saber o que incomoda mesmo
em O Animal Cordial? É o fato de tanto horror
representar fielmente os nossos tempos, quebrando as convenções do
gênero para, sim, ser um angustiante slasher, mas, também
para se tornar, a cada personagem, a cada reviravolta, a cada
diálogo, um mosaico sobre as agruras que atingem a sociedade
brasileira. Sempre considerei que os melhores filmes de horror são
esses que se utilizam das ferramentas do gênero para falar sobre
questões humanas, íntimas ou sociais. E, se você presta a mínima
atenção no Brasil que está aí, verá que o sangue que escorre de O Animal Cordial é, na verdade, o de um país em plena
convulsão.
3
- Mostra o autoritarismo e o abuso de poder no ambiente de trabalho
Vejam
de onde parte O Animal Cordial: após um longo dia de
trabalho em um restaurante, o chefe decide manter os funcionários
além do expediente porque mais dois ou três clientes chegaram ao
estabelecimento que já deveria estar fechado. Os funcionários
reclamam. O chefe não ouve. Manda quem pode, obedece quem precisa.
Logo mais, um acontecimento inesperado vira o restaurante de pernas
para o ar, mas já no início da projeção você percebe as
discussões de um roteiro super contemporâneo: em tempos que as
taxas de desemprego crescem e que trabalhamos o dobro para pagar o
mesmo custo de vida que tínhamos até pouco tempo atrás, parece não
haver muita solução a não ser entrar no sistema e aceitar as cada
vez mais terríveis condições trabalhistas para conseguir pagar as
contas, aguentando até mesmo os surtos autoritários de um chefe
que, com os empregados na palma da mão, faz questão de mostrar quem
é autoridade e quem é empregado.
4
- Lembra que falta de educação é coisa de gente rica
Diria
a já eterna Clara de Sonia Braga em Aquarius que falta
de educação não é coisa de gente pobre, e sim de gente rica que
acredita que dinheiro define caráter. Verdade. E, quando a
personagem vivida por Camila Morgado, bem vestida, maquiada e
acompanhada do marido, entra no restaurante de O Animal Cordial,
logo se percebe isso: na maneira como não dirige o olhar à
atendente, como faz seu pedido praticamente questionando o
entendimento da servente em relação ao que é servido e até mesmo
na postura com que se coloca em uma mesa de jantar, ela é a
afiadíssima na representação daquela parte elitista da população
que, entre outras coisas, acredita que, por pagar um serviço, está
acima de quem o presta. Na prática, aplicam o que defendem na
política que acreditam ser a melhor para o país: aquela excludente
e indiferente a quem não se equipara ao seu altíssimo padrão de
vida.
5
- Renega os estereótipos femininos dos filmes de horror
Pense
nos filmes de horror que você já viu. Na maioria deles,
provavelmente as figuras femininas têm pouca influência. Ou pior:
surgem apenas com pouca roupa para morrer de maneiras sádicas ou
voyeurísticas. Pois O Animal Cordial desconstrói
tudo isso. O personagem vivido por Murilo Benício pode ditar boa
parte dos acontecimentos da trama, mas é a figura de Luciana Paes
que toma as rédeas do filme. Muitos dos desdobramentos são
conduzidos por ela, inclusive a única cena de sexo onde é a mulher
quem comanda cada centímetro de uma poderosíssima interação
sexual. Sem idealizações ou estereótipos, Luciana, como a atriz
gigante que é, dá ainda mais intensidade e complexidade a uma
protagonista que subverte o que o gênero costuma fazer com o sexo
feminino, tornando-o peça decisiva de uma trama que não faria o
menor sentido sem ele.
6
– Entrega ao personagem LGBTQI+ a bússola moral da trama
Normalmente
retratados como mero alívio cômico ou figuras cujos dilemas se
resumem à questão da sexualidade, os personagens LGBTQI+ também
ganham nova roupagem em O Animal Cordial. À parte o fato de
Irandhir Santos ser um grande ator, a construção de seu cozinheiro
de gênero fluido o coloca como a única pessoa verdadeiramente sã e
com alguma bússola moral dentro do rico mosaico construído pelo
roteiro. Capaz de racionalizar situações sem jamais recorrer a
escolhas ou instintos primitivos, o cozinheiro é a voz da razão em
um ambiente onde todos, anestesiados pelo pânico, só conseguem
expor o lado mais sombrio de suas naturezas. Há um universo dentro
de cada olhar e de cada decisão tomada pelo personagem de Irandhir,
que, mesmo sendo um coadjuvante, consegue, junto ao material que lhe
é dado, construir um tocante background para o cozinheiro e
para tudo o que ele representa.
7
- Defende a ideia de que a pior violência é, na verdade, a
emocional
Em
um filme com expressivas doses de sangue fatalidades, Gabriela Amaral
Almeida propõe que a maior violência não é a física, e sim
outras que eu e você vivemos ou presenciamos diariamente no
cotidiano. Já falei sobre a forma como a elitista passiva-agressiva
de Camila Morgado despreza a garçonete do restaurante. No entanto,
há outro momento altamente simbólico: aquele em que Irandhir Santos
tem seus cabelos cortados. A cena é dolorosa porque representa, mais
uma vez, o ódio gratuito e infundado à uma minoria que precisa
lutar diariamente pela aceitação de sua identidade na vida e no
trabalho. É golpe duríssimo ver uma identidade julgada e agredida
pela sociedade que, sabe-se lá o porquê, tanto se incomoda com o
fato do próximo ser simplesmente quem é. Muito mais do que qualquer
sangue escorrendo pelas paredes após o disparo certeiro de uma arma.
8
- Alerta para o perigo da paixão e do fanatismo
Secretamente,
uma personagem de O Animal Cordial está apaixonada. E,
em nome da paixão e do desejo de ser notada, toma decisões que, em
um dia qualquer de sua existência, não tomaria. Essa personagem
também é capaz de se adaptar à personalidade do amado,
frequentemente se anulando para apenas agradá-lo. Em determinado
ponto, enfim, também não há mais problema em cometer crimes em
nome do amor. Paixão e fanatismo podem muito bem caminhar juntos, e O Animal Cordial alerta para essa linha tênue,
utilizando, claro, a metáfora do horror. É uma representação
assombrosa do período polarizado que vivemos no Brasil, quando, a
todo custo, movimentos e militâncias rompem as barreiras do bom
senso moral e ético para atacar o oponente e defender cegamente
qualquer ídolo que julguem digno de veneração.
9
- Retrata a busca pelo protagonismo em uma sociedade de winners
O
que a vida costuma nos exigir é o seguinte: você se torna alguém
ou, então, nada vale a pena. E ser alguém pode se resumir a ser o
dono de um estabelecimento de respeito. Também pode se resumir a
algum tipo de reconhecimento por parte de “superiores”. Ou,
enfim, pode ser também a vontade de ser protagonista de sua própria
vida. Os personagens de Murilo Benício e Luciana Paes englobam tudo
isso, cada um à sua maneira. Gosto especialmente dela, que,
garçonete tratada com descaso pelo chefe, faz o que é preciso para
ter algum tipo de importância dentro do restaurante onde trabalha ou
que toma decisões radicais para sair do status de mulher comum e
pouco desejada para, enfim, ser vista como uma figura influente,
atraente e, por que, não temida. Em uma sociedade que tanto festeja
os winners, os personagens de O Animal Cordial caem mais
um pouco na escuridão ao serem movidos por essa pressão
sócio-cultural.
10
- Reforça a falência da dita masculinidade
Murilo
Benício dá vida à figura masculina central de O Animal Cordial. No entanto, o personagem é, no fundo, um homem falido em
reputação e masculinidade. Ele tenta provar a sua hombridade de
maneiras equivocadas, machistas e preconceituosas, o que está
evidente em toda e qualquer interação que ele estabelece com
qualquer outro personagem. Dono de um restaurante, abusa do seu poder
de chefe para (tentar) mostrar que tem alguma autoridade ou que é um
relevante profissional. Homem supostamente forte em uma situação de
perigo, pensa que, por ter uma arma na mão e por ter o controle de
um momento extraordinário, pode submeter todos às situações que
bem entender. É o chamado macho alfa que, na ameaça, no machismo,
no preconceito e no grito, busca se provar homem e que, ao fazer
isso, só mostra o quão pequeno e insignificante é como ser humano.
Exatamente como o inominável que motiva essa série do Classe de
Cinema.
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Entenda o que é, porque existe e leia as outras edições do projeto O Cinema Diz: #EleNão, em que convidei várias pessoas para escolher e escrever sobre um filme que converse com a nossa situação política, no intuito de refletir e ilustrar os riscos que estamos correndo.
Yuri, mais uma vez, parabéns pela iniciativa tão necessária! Adorei participar! Um abraço! :))
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