quinta-feira, 4 de outubro de 2018

O CINEMA DIZ: #ELENÃO - Nº 6




Minha convidada hoje é a Maressah Sampaio, jornalista e coordenadora de produção da Ulbra TV (afiliada da TV Cultura). Foi assistente de direção, produção e roteiro audiovisual em curtas, videoclipes e no longa-metragem Simone. É também especialista em Estratégia e Relações Internacionais Contemporâneas (UFRGS) e ativista de Direito Humanos na Anistia Internacional Brasil também.




Ele está de volta, ou ele nunca se foi?


O discurso está entranhado e ressoa mundo afora: “eles estão roubando nossos empregos”; “não se pode mais falar nada, que te chamam de racista”; “o politicamente correto está deixando o mundo sem graça”; “as minorias têm que se curvar à maioria”... Ironicamente, graças às flexibilidades da democracia, pensamentos autoritários circulam livremente pelas correntes de Whatsapp trocadas entre os “cidadãos de bem”.  Pessoas como o seu tio no churrasco de domingo, aquele humorista sem graça do talk show de fim de noite, o presidente dos Estados Unidos, a madame colecionadora de bolsas de marca que não suporta dividir aeroporto com pobre, o frentista neopentecostal do posto de gasolina que ganha um salário mínimo e cada vez menos gorjetas, e, claro, um certo candidato à presidência do Brasil.



Perdoem a digressão na abertura, mas foi dentro deste contexto, às véspera das eleições, que fui levada a rever o filme alemão Ele Está de Volta (Er ist wieder da, 2015), adaptado a partir do best-seller homônimo de Timur Vermes. O roteiro, que mantém a essência da obra original, expande as possibilidades da sátira, utilizando uma mistura de documentário e ficção para levantar a seguinte questão: o que aconteceria se Hitler voltasse hoje e saísse andando por aí? Não preciso nem dizer que a resposta é assustadora, tamanha a semelhança com o que estamos vivendo na atualidade. 


O diretor David Wnendt demonstra que o resultado da experiência pode parecer cômico, mas é, de fato, trágico. Na pele de Hitler, o até então desconhecido ator Oliver Masucci faz um tour pela Alemanha, numa espécie de reality show em que ele precisa interagir com gente comum que encontra por lugares aleatórios, como lanchonetes, praças e supermercados. As pessoas, a princípio, começam rindo, tratam-no como um palhaço, achando graça naquela figura espalhafatosa militarizada. Tiram selfies, gravam com o celular, mandam para os amigos. É a sociedade do espetáculo em sua forma mais óbvia. Mas o pior ainda está por vir.



Não demora muito, após alguns minutos a mais de conversa com Hitler, grande parte da população já se sente à vontade para exaltar o passado, reclamar da falta de educação dos filhos pequenos de imigrantes e dizer que a Alemanha precisa ser restaurada.  Repito: a única parte ficcional nessas interações é a interpretação brilhante de Manuscci. Tudo que é dito pelos cidadãos é espontâneo.  “I love Hitler”, grita uma turista encantada com a representação do ditador. 



Já em sua porção dita ficcional, “Ele Está de Volta” traz referências claras a filmes como De Volta Para o Futuro e A Queda!  As Últimas Horas de Hilter, muitas vezes praticamente recriando, em forma de sátira, cenas e personagens desses e de outros clássicos. Em que pesem as escolhas narrativas acertadas, a obra se torna ainda mais instigante quando se arrisca na análise sociocultural da sociedade alemã mas poderia ser a brasileira, como você já deve ter notado.  Depois de fazer sucesso no reality, o Führer chama a atenção dos executivos de um grande canal de TV, que passam a colocá-lo em todos os programas da grade. Ele segue dizendo atrocidades, mas, como todos encaram suas frases como piadas inofensivas, Hitler vira febre no país todo. Cai nas graças, inclusive dos youtubers.


De forma explícita, seja através das falas do protagonista, seja mostrando o conteúdo alienante distribuído pela programação da TV aberta, o filme questiona o poder dos veículos de comunicação sobre as massas, poder esse que se recicla através das chamadas novas mídias. A propagação dos discursos de ódio disfarçados de liberdade de expressão e os limites do humor também são temas que vêm à tona.  E, devemos lembrar: tudo isso já acontecia enquanto Hitler ainda era dado como morto. Sua ressurreição foi apenas o estopim para a combustão social.



A obra deixa no ar que não existem limites entre o que “aconteceria” e o que já “acontece” hoje não só na Alemanha, como no mundo todo. Hitler, Trump, Le Pen ou Bolsonaro são apenas nomes diferentes para o mesmo sintoma. E precisamos entender como surgem estes líderes. Eles se aproveitam das condições de degradação do tecido social: pobreza, criminalidade, desemprego, corrupção... Surgem nos momentos em que a população, desiludida, já está descrente na democracia. Em dado momento do filme, uma balconista conta a Hitler: “Eu nem voto mais. É tudo manipulado”.  

Acuadas, as pessoas passam a identificar um alvo comum: “o outro”. Afinal, é o “o outro” que impede a unificação da pátria e a volta da ordem.  Quem é “o outro” atual, o “inimigo do povo”? Imigrantes, quilombolas, LGBTs, indígenas, mulheres que não se dobram aos padrões, “vagabundos do Bolsa Família”, os “esquerdistas”...  Assim, oferecendo soluções simplistas para problemas complexos, os salvadores da pátria surgem do caos e estimulam ainda mais caos. Afinal, eles se alimentam do caos. Eis o fascismo, restaurado.

Ontem, eram saudações nazistas. Hoje, são gestos imitando armas com as mãos. Uns acreditam que a história se repete como farsa. Já Mark Twain disse que “a história não se repete, mas rima”. É por aí.

(diálogo retirado do filme)


Sawatski: - Você é um monstro!

Hitler: - Sou? Então é melhor você culpar também aqueles que elegeram este monstro. Eles todos eram monstro? Não. Eram pessoas normais que escolheram alguém diferente dos outros para confiar o destino do seu país.



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Entenda o que é, porque existe e leia as outras edições do projeto O Cinema Diz: #EleNãoem que convidei várias pessoas para escolher e escrever sobre um filme que converse com a nossa situação política, no intuito de refletir e ilustrar os riscos que estamos correndo.



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