Minha convidada hoje é a Maressah Sampaio, jornalista e coordenadora de produção da Ulbra TV (afiliada da TV Cultura). Foi assistente de direção, produção e roteiro audiovisual em curtas, videoclipes e no longa-metragem Simone. É também especialista em Estratégia e Relações Internacionais Contemporâneas (UFRGS) e ativista de Direito Humanos na Anistia Internacional Brasil também.
Ele está de volta, ou ele nunca se foi?
O discurso está entranhado e ressoa mundo afora: “eles estão roubando nossos
empregos”; “não se pode mais falar nada, que te chamam de racista”; “o
politicamente correto está deixando o mundo sem graça”; “as minorias têm que se
curvar à maioria”... Ironicamente, graças às flexibilidades da democracia, pensamentos
autoritários circulam livremente pelas correntes de Whatsapp trocadas entre os “cidadãos
de bem”. Pessoas como o seu tio no
churrasco de domingo, aquele humorista sem graça do talk show de fim de noite,
o presidente dos Estados Unidos, a madame colecionadora de bolsas de marca que
não suporta dividir aeroporto com pobre, o frentista neopentecostal do posto de
gasolina que ganha um salário mínimo e cada vez menos gorjetas, e, claro, um
certo candidato à presidência do Brasil.
Perdoem a digressão na abertura, mas foi dentro deste contexto, às véspera das eleições, que fui levada a rever o filme alemão Ele Está de Volta (Er ist wieder da, 2015), adaptado a partir do best-seller homônimo de Timur Vermes. O roteiro, que mantém a essência da obra original, expande as possibilidades da sátira, utilizando uma mistura de documentário e ficção para levantar a seguinte questão: o que aconteceria se Hitler voltasse hoje e saísse andando por aí? Não preciso nem dizer que a resposta é assustadora, tamanha a semelhança com o que estamos vivendo na atualidade.
O diretor David Wnendt demonstra que o resultado da
experiência pode parecer cômico, mas é, de fato, trágico. Na pele de Hitler, o
até então desconhecido ator Oliver Masucci faz um tour pela Alemanha, numa espécie de reality show em que ele precisa
interagir com gente comum que encontra por lugares aleatórios, como lanchonetes,
praças e supermercados. As pessoas, a princípio, começam rindo, tratam-no como
um palhaço, achando graça naquela figura espalhafatosa militarizada. Tiram
selfies, gravam com o celular, mandam para os amigos. É a sociedade do
espetáculo em sua forma mais óbvia. Mas o pior ainda está por vir.
Não demora muito, após alguns minutos a mais de conversa com
Hitler, grande parte da população já se sente à vontade para exaltar o passado,
reclamar da falta de educação dos filhos pequenos de imigrantes e dizer que a
Alemanha precisa ser restaurada. Repito:
a única parte ficcional nessas interações é a interpretação brilhante de
Manuscci. Tudo que é dito pelos cidadãos é espontâneo. “I love Hitler”, grita uma turista encantada
com a representação do ditador.
Já em sua porção dita ficcional, “Ele Está de Volta” traz referências claras a
filmes como De Volta Para o Futuro e A Queda! – As Últimas Horas de Hilter, muitas
vezes praticamente recriando, em forma de sátira, cenas e personagens desses e
de outros clássicos. Em que pesem as escolhas narrativas acertadas, a obra se
torna ainda mais instigante quando se arrisca na análise sociocultural da
sociedade alemã — mas poderia ser a brasileira, como você já deve ter
notado. Depois de fazer sucesso no reality, o Führer chama a atenção dos executivos de um grande canal de TV, que
passam a colocá-lo em todos os programas da grade. Ele segue dizendo
atrocidades, mas, como todos encaram suas frases como piadas inofensivas, Hitler
vira febre no país todo. Cai nas graças, inclusive dos youtubers.
De forma explícita, seja através das falas do protagonista,
seja mostrando o conteúdo alienante distribuído pela programação da TV aberta,
o filme questiona o poder dos veículos de comunicação sobre as massas, poder
esse que se recicla através das chamadas novas mídias. A propagação dos
discursos de ódio disfarçados de liberdade de expressão e os limites do humor
também são temas que vêm à tona. E,
devemos lembrar: tudo isso já acontecia enquanto Hitler ainda era dado como
morto. Sua ressurreição foi apenas o estopim para a combustão social.
A obra deixa no ar que não existem limites entre o que
“aconteceria” e o que já “acontece” hoje não só na Alemanha, como no mundo todo.
Hitler, Trump, Le Pen ou Bolsonaro são apenas nomes diferentes para o mesmo sintoma.
E precisamos entender como surgem estes líderes. Eles se aproveitam das
condições de degradação do tecido social: pobreza, criminalidade, desemprego,
corrupção... Surgem nos momentos em que a população, desiludida, já está
descrente na democracia. Em dado momento do filme, uma balconista conta a
Hitler: “Eu nem voto mais. É tudo manipulado”.
Acuadas, as pessoas passam a identificar um alvo
comum: “o outro”. Afinal, é o “o outro” que impede a unificação da pátria e a
volta da ordem. Quem é “o outro” atual,
o “inimigo do povo”? Imigrantes, quilombolas, LGBTs, indígenas, mulheres que
não se dobram aos padrões, “vagabundos do Bolsa Família”, os “esquerdistas”... Assim, oferecendo soluções simplistas para
problemas complexos, os salvadores da pátria surgem do caos e estimulam ainda
mais caos. Afinal, eles se alimentam do caos. Eis o fascismo, restaurado.
Ontem, eram saudações nazistas. Hoje, são gestos imitando
armas com as mãos. Uns acreditam que a história se repete como farsa. Já Mark
Twain disse que “a história não se repete, mas rima”. É por aí.
(diálogo retirado do filme)
Sawatski:
- Você é um monstro!
Hitler: - Sou? Então é melhor você
culpar também aqueles que elegeram este monstro. Eles todos eram monstro? Não.
Eram pessoas normais que escolheram alguém diferente dos outros para confiar o
destino do seu país.
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Entenda o que é, porque existe e leia as outras edições do projeto O Cinema Diz: #EleNão, em que convidei várias pessoas para escolher e escrever sobre um filme que converse com a nossa situação política, no intuito de refletir e ilustrar os riscos que estamos correndo.
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