Foi um ano estranho. Achei que a opressão do “homem-macaco” em The Square - A Arte da Discórdia, seria o ápice desse sentimento em 2018. Tolo. As cores vivas e chapadas que tão bem traduziram a perspectiva infantil de Moonee em Projeto Flórida ficaram em alguma outra vida, talvez junto com Miguel que passou desta para o mundo dos mortos, indo resgatar com os já falecidos a importância da memória em Viva - A Vida é uma Festa. Deveríamos ter feito mais em relação a isso ao longo dos trezentos e tantos dias que se seguiram depois.
Ah, se ao menos o mesmo Brasil que lotou as salas de cinemas por semanas para assistir T’Challa assumir o manto de Pantera Negra tivesse lembrado da dívida histórica que ainda mantém com os povos africanos, se tivessem lotado da mesma maneira as salas de Infiltrado na Klan, talvez tivessem percebido que as caricaturas grotescas com que Spike Lee pintou os membros da KKK, são idênticas àquelas que elegeram a altos cargos do nosso governo.
A humanidade, como um todo, nem parece a mesma que neste mesmo ano oscarizou um filme sobre a paixão impossível e bela que é o centro de A Forma da Água, e embora seja a mesma espécie que premiou o roteiro de Me Chame Pelo seu Nome, parece não ter entendido as linhas da confissão do pai de Elio ao final daquele filme, brutal em sua delicadeza e honestidade. A esperança, o idealismo e o otimismo de Jogador Número 1, com suas hordas de figuras de todos os tipos, tamanhos e formas enfrentando um exército uniforme e de olhos vendados, cederam lugar à visão mecânica e niilista dos diálogos frios e pragmáticos de O Sacrifício do Cervo Sagrado. O egocentrismo e o cinismo tolos dos políticos vistos na cena do funeral em A Morte de Stalin, pulou das telas para os noticiários brasileiros.
Nesse mesmo ano em que as mulheres bateram o pé dizendo Eu Também e Ele Não do lado de cá da tela, essa força se traduziu na rebeldia da protagonista de Lady Bird. Mesmo subestimadas, oito delas planejaram roubar uma jóia super-protegida, e outras quatro assumiram o esquema perigoso arquitetado por homens mafiosos e profissionais, se negando a ser as vítimas que todos acreditavam que as Viúvas seriam. Em 2018 as mulheres assumiram a frente de uma arriscada expedição científica em Aniquilação, se recusaram a ceder suas personalidades a homens dominadores, mesmo o respeitado e psicótico estilista que protagoniza Trama Fantasma.
Um ano que tanto violentou as mulheres no espectro político, viu uma delas criar um lobisomem como a um filho, unindo-se lado a lado desse menino marginalizado para enfrentar um mundo de intolerância. Aliás, as mães de 2018 foram, na fantasia, os retratos das mães muito reais do lado de cá. Elas deixaram os maridos em casa e saíram trabalhar, indiferentes ao quão Incríveis eles são. Outras, como aquela vivida por Emily Blunt, que protegeram seus filhos em total silêncio. A mesma Emily Blunt, aliás, que retornou mais tarde pendurada em uma pipa para nos cantar a mais ingênua e, ainda assim, a mais necessária das lições na pele da icônica Mary Poppins.
E como se repete na realidade, houve também as mães que enfrentaram o luto. Se a personagem de Toni Collette foi consumida pela dor e o horror do vazio em Hereditário, a Mildred de Frances McDormand transformou essa agonia em luta. E, não em busca de justiça, mas contra a conformidade, anunciou para o mundo que não deixaria o assassinato e estupro de sua filha ser apenas mais um nos números assustadores que se elevam a cada ano pelo mundo.
Uma realidade negada pelos mesmos homens que, agora, fazem grande e influente número nos cargos a serem assumidos em 2019. Não era para ninguém soltar a mão de ninguém, e ainda assim, termino o ano menos afeito à doçura de Paddington 2, e mais próximo do sentimento de Pedro, sozinho mesmo quando cercado de pessoas na cidade grande, já que essa multidão se traduz em vultos sem rosto e sem empatia que infestam a assustadora e, infelizmente, acurada realidade urbana retratada em Tinta Bruta. Que amigos virão no encalço daqueles se expressam como podem? Sejam as tintas fosforescentes do Garoto Neon ou as experimentações musicais de Yonlu. Quantos amigos não deixamos de ter e talentos não deixamos de insuflar, esquecidos em apartamentos solitários da selva de pedra? Quanta incompreensão, impaciência e velhas desculpas de rotina vamos continuar colocando como empecilho entre os valores alardeados pelos nossos heróis das telonas, e a realidade melancólica de hoje?
Que luta podemos esperar de uma resistência dividida? Se nem mesmo os Vingadores e seus poderes magníficos conseguiram parar um único vilão estando separados, que ficção niilista e despótica podemos vislumbrar para 2019? Que Cinema, que família, que amizades e sociedade podemos esperar se continuarmos rumando um caminho que prefere pensar que o próximo não é problema meu? O Cinema, como Arte que é, não existe no vácuo, ele ecoa os gritos desesperados de uma atualidade. Ouçam o que essas formas de expressão diz. Procurem nos frames, nas notas e nas letras dos seus músicos e cantores favoritos, nos traços dos pintores e nos passos dos dançarinos.
As perdas e os danos trazidos por 2018 são vastos e profundos, mas não incuráveis. Como Clara segurando a mão de Joel em As Boas Maneiras, antes de se preocupar em não soltar a mão de quem já está atado a sua, se preocupe em segurar também as mãos daqueles que não estão atados a ninguém. Daqueles cujos problemas e a situação podem assustar a muitos. Sem abandonar e fora da zona de conforto. Só assim se faz resistência de verdade, lá na tela do Cinema, e aqui.
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