quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

CRÍTICA: HOMEM-ARANHA NO ARANHAVERSO


Um porco falante vestido de porcoaranha entrega um martelo de dimensões ridículas para o protagonista e diz: “Ele cabe no seu bolso”. O público ri, pois entende que em um universo concebido totalmente por animação, ele cabe mesmo.


Um dos maiores trunfos das produções animadas sempre foi esse “desapego” que os chamados desenhos têm do compromisso com as leis que regem a nossa não tão colorida realidade. Diferente de um live-action (filme com pessoas de carne e osso), a animação pode ser extremamente caricata ao ponto de beirar o abstrato, sem, com isso, tirar o espectador da imersão cinematográfica. E se filmes como Os Incríveis 1 e 2 já exploraram bastante essas potencialidades no modo como movimentam os planos e fazem cortes e enquadramentos que seriam impossíveis para uma câmera de verdade, Homem-Aranha no Aranhaverso extrapola essa ideia e utiliza quase todos os recursos narrativos, sejam visuais ou sonoros possibilitados pela animação, para tornar cada instante de projeção imersivo e cativante para nós aqui do lado menos divertido da tela.



É tanta invencionice que, caso o roteiro fosse sobre um nabo em processo de decomposição, suspeito que ainda assim estaríamos assistindo a um filme empolgante. Pois aqui entra a máxima do mestre Roger Ebert: “não importa sobre o que um filme é, mas como ele é sobre o que é”. Então é quase um bônus perceber que o enredo apresenta uma premissa completamente nova frente ao que já conhecíamos: Sim, a história gira em torno de Miles Morales, um menino do Brooklyn que, certo dia, picado por uma aranha radioativa acaba ganhando superpoderes que o transformam em, suspense, Homem-Aranha!


A origem do teioso já é quase tão famosa (e batida) quanto a do Batman, ou a de Jesus - ouso dizer que ambos os heróis juntos já devem ser mais populares que esse último. Não faria sentido contar DE NOVO toda a trajetória do cabeça de teia só porque agora, bem, ele não se chama Peter Parker e nem é branco. Ao invés disso a trama nos joga naquele universo quase que in media res, ou seja, no meio da ação, quando descobrimos que o Rei do Crime está planejando abrir um portal para outras dimensões e, tcharam, acaba trazendo para a dimensão de Miles algumas outras versões do Homem-Aranha de realidades paralelas.


Muito Rick & Morty pra você? Então larga esse texto e o filme de mão, porque fica ainda mais caótico quando descobrimos que algumas dessas versões não só foram encarnadas por pessoas (e animais) diferentes, como algumas delas são de universos regidos por concepções estéticas próprias, como a dos animes, a dos cartoons e até a dos contos pulp de suspense da década de 1940. Animados em frame rates e com traços distintos, esses personagens adentram um mundo que já vinha sendo narrado para o espectador de forma incrivelmente diversa e, o mais importante de tudo, de maneira orgânica.


Usando as revistas em quadrinhos como base estética da sua concepção visual, Aranhaverso utiliza sem dó multitelas e legendas que surgem no ar descrevendo exatamente o que estamos ouvindo dos personagens, além de criar letreiros que literalmente escrevem as onomatopeias e convenções sonoras como gritos ou pancadas - sabendo que, justamente por serem redundantes na linguagem audiovisual, esses recursos vão soar engraçados ao espectador. Entretanto, o filme jamais permite que essas “ferramentas” venham a poluir um visual já carregado em detalhes e que aposta em uma paleta de cores extra-saturadas, de acordo com o que esperamos encontrar nas páginas de gibis de super-heróis. Aliás, é incrível que, para além de uma brincadeira divertida com as impressões de revistas do tipo, a ideia de colocar algumas camadas de cor propositalmente desencaixadas dos traços é também utilizada para representar a profundidade de campo. Quanto mais desencaixado, mais fora de foco o olho entende que está a figura, conseguindo posicioná-la mais à frente ou mais atrás no quadro. Além do mais, texturas são definidas por pontilhamentos assim como grandes espaços tendem a ser preenchidos por cores mais chapadas, especialmente nos momentos de ação, emulando as técnicas de impressão em papel, o que só deixa a experiência visual ainda mais bela e recompensadora ao olho atento.


Tudo isso só fica mais impressionante (e eu quero repetir essa palavra: impressionante) com o ritmo adotado pela montagem. Aranhaverso é um filme que se mantém em constante movimento, pulando de cenas de ação megalomaníacas para outros momentos mais comedidos que, ao seu próprio modo, são agitados e dinâmicos. Sem intenção de deixar o ritmo cair, mesmo uma conversa mais pessoal entre Miles e Peter Parker ganha uma visualidade interessante ao ser contada com a câmera virada de lado, uma vez que os personagens conseguem andar nas paredes e, portanto, oferecer um ângulo e um cenário incomum para o tipo de diálogo que poderia soar enfadonho e clichê.  


E é disso que eu falo quando aponto a vontade óbvia que o projeto tem de preencher cada instante com algo divertido para os olhos e os ouvidos da plateia. Sim, os ouvidos também, uma vez que a quase incessante trilha de Daniel Pemberton faz um trabalho incrível ao costurar e engrandecer as sequências de ação do projeto, baseando-se principalmente em instrumentos eletrônicos e sintetizadores.


Entretanto, não dá pra dizer que Aranhaverso está na vanguarda da linguagem cinematográfica, apesar de ser uma afirmação mais do que justa constatar que o filme entende a dinâmica do espectador conectado de 2019, já acostumado à convergência de plataformas e a sua consequente multiplicidade de recursos informativos. Digo mais, um longa como Aranhaverso só é possível hoje porque alguns projetos realmente se arriscaram no passado para explorar os recursos de linguagem que agora essa animação utiliza com segurança. Então, justiça seja feita aos esnobados Speed Racer e Scott Pilgrim contra o Mundo, produções marginalizadas e mesmo renegadas pelos altos círculos dos estúdios, das premiações e até da crítica especializada. São filmes que deram a cara a tapa utilizando de estéticas e recursos visuais e sonoros semelhantes, como os cortes em cortina que tornam mesmo a animação 3D em uma figura bidimensional, ou os grafismos e letreiros típicos de gibis e videogames, pavimentando assim o caminho que hoje resultou no longa em questão.


Não fosse o suficiente, o filme acumula também méritos temáticos. Com o coração no lugar certo, Aranhaverso oferece um merecido chute nas bolas aos “nerds” que jamais aceitariam que seus supers favoritos fossem interpretados por atores negros ou mesmo de gêneros distintos - vide as polêmicas que sempre emergem quando se começa a especular artistas não brancos para viver um James Bond ou um Batman, sem contar o boicote injusto imposto ao divertido Caça-Fantasmas de 2016. E mesmo já sendo um personagem consolidado nos quadrinhos, a mensagem trazida por Miles nas telonas de que qualquer um pode ser o herói, soa fresca e tristemente relevante em tempos de ódio insuflados por presidentes adeptos ao extermínio em massa. Além disso é importante que o filme também absorva bastante da cultura do jovem protagonista para a narrativa, que utiliza bastante do colorido dos grafites e das batidas sintéticas do Hip-Hop.

Oferecendo ainda uma galeria de personagens carismáticos e que, mesmo quando unidimensionais, soam curiosos o suficiente para prender a atenção, Aranhaverso revisita a trajetória que já conhecíamos tão bem com o rosto de Peter Parker, agora sob o olhar jovem, frenético e pulsante do jovem Miles Morales. No caminho ainda presenteando o espectador com inúmeras imagens que poderiam ser um belo quadro na parede. Se antes eu lembrava de títulos como O Cavaleiro das Trevas, Primeira Classe, Os Incríveis, Watchmen, Logan, Hellboy, Super-Homem e X-Men quando pensava nos melhores filmes de super-herói já produzidos, agora eu vou poder lembrar também de Homem-Aranha no Aranhaverso.

Nota: 10/10

  

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