quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

CRÍTICA: A FAVORITA


O amor é estranho. E eu digo esquisito mesmo, torto e desconfortável. Ao menos, é o que parece pensar o grego Yorgos Lanthimos, diretor de obras que, até agora, se dedicaram a navegar entre os espectros mais bizarros do afeto humano - e, de certa forma, dos animais também. Ao dirigir os notáveis Dente Canino, O Lagosta e O Sacrifício do Cervo Sagrado, o cineasta tensionou a extremos caricatos as relações pessoais de seus personagens, tornando-as particularmente mais hipnotizantes justamente pelo modo impessoal e até frio com que constrói suas narrativas. E embora seja, de algumas formas, o seu filme mais comercial até agora, A Favorita ainda assim oferece uma experiência intrigante que não consegue deixar ilesa a atenção do espectador, girando em torno de cenas como aquela que traz uma moça ambiciosa masturbando seu pretendente enquanto monologa sobre seus planos, indiferente e até desdenhando a necessidade masculina de satisfação sexual em comparação com a escalada de poder que está arquitetando.



Reconstituindo o reinado da Rainha Anne (Olivia Colman) no começo do Século XVIII, soberana da então unificada nação da Inglaterra durante um turbulento período de guerra, a trama aborda a relação estreita que a monarca mantinha com Sarah Marlborough (Rachel Weisz), a dama mais influente de sua corte e uma conselheira pessoal. Deixando-se ser tratada por apelidinhos bobos, Anne presenteia sua amiga com um castelo e até permite que ela tenha uma cópia da chave de seus aposentos. A dinâmica entre as duas é abalada, entretanto, com a chegada de Abigail (Emma Stone), uma prima distante de Sarah que rapidamente cai nos encantos da majestade, disputando seu favoritismo.

Neste caso, não teria sido surpresa alguma se outro diretor tivesse se rendido ao burocratismo típico de biografias e histórias sobre eventos factuais, apelando também a uma elegância ou formalidade visuais que casassem com os conflitos palacianos abordados pelo roteiro de Deborah Davis e Tony McNamara - é a primeira vez que nem Yorgos Lanthimos ou seu parceiro habitual, Efthymis Filippou, assinam o texto de um projeto comandado pelo primeiro, o que explica porque estão mais diluídos os diálogos monocórdios e estritamente racionais que eram uma das características marcantes de seus longas anteriores. Porém, nenhuma daquelas alternativas de abordagem é adotada por Yorgos Lanthimos, que já sai empregando lentes grande-angular que vão daquelas que distorcem levemente as formas e tamanhos dos quadros, gerando apenas a impressão de estranheza, até outras bastante convexas (apelidadas de olho-de-peixe) que simulam o efeito de um olho mágico, conferindo ao pequeno universo do Palácio de Kensington o ar de uma caricatura em carne e osso.


O cineasta, inclusive, jamais foge do cômico, provocando a estranheza e o desconforto justamente para extrair bom-humor do contraste que essa abordagem encontra na pompa e na cordialidade que se espera das relações da realeza e seus súditos. Além disso, Lanthimos e o seu diretor de fotografia, Robbie Ryan, trabalham praticamente com a ausência de luzes artificiais, usando o sol e archotes para conferir naturalismo ao interior e arredores do palácio, e assim balanceando o humor e impedindo também que aquelas figuras soem cômicas em excesso, o que faria com que perdessem o peso e a complexidade que as tornam tão fascinantes. Preocupados com isso, a dupla ainda intercala alguns quadros belíssimos que, adotando a dessaturação geral da fotografia, enfocam em primeiro plano o rosto das protagonistas em baixíssimas profundidades de campo (área de foco), ressaltando assim os pequenos detalhes da pele, dos olhos, do cabelo e das expressões das atrizes, o que ajuda a criar de forma intuitiva no espectador, a ideia de que, apesar de toda a caricatura e estranheza, aquelas ainda são pessoas reais com personalidades sólidas e repletas de nuances.

Auxilia nisso também o design de produção de Fiona Crombie, concebendo cenários distantes das idealizações de castelos da realeza, mas não menos opulentos por isso. Aliás, Crombie encontra modos curiosos de ressaltar a natureza deturpada de suas personagens ao compor os aposentos de Anne com inúmeras peças de decoração, tapeçarias e quadros que poluem o visual do quarto da rainha em comparação com os espaços mais abertos e assépticos do palácio. Por si só, o quarto da monarca já denuncia a tendência que tem de se apegar e se rodear de coisas - sim, coisas, pois indiferente se artefatos ou seres vivos, no fim das contas, para ela são todos objetos de sua posse, como deixa claro o perturbador plano final.

E Olivia Colman se equilibra de maneira eficaz entre a imponência de Anne, que ela exala através de sua estatura corpulenta, e a insegurança e carência da Senhora Morley (como Sarah apelida a rainha) nos modos como às vezes fala segurando as próprias mãos e entremeando suas falas. Assim, depois de fazer uma exigência, ela ouve um duro “O amor tem limites”, ao que retruca com um tímido “Bom, não deveria”, quase como se tivesse medo de exercer sua soberania e, com isso, perder a dedicação e carinho de suas favoritas.



E como Sarah, Rachel Weisz demonstra entender esse delicado emocional de Anne, mantendo a majestade numa rédea curta entre as demonstrações de afeto extremo e a rispidez de seus modos, sabendo que, para manter a rainha sobre controle, precisa demonstrar que a conhece, que é leal e carinhosa, mas também que jamais vai permitir à monarca se acomodar nesses tratamentos e achar que eles são incondicionais, o que a levaria a enxergar a dama como um simples objeto servil. Uma dinâmica que é perturbada no cerne quando Abigail passa a fazer parte da rotina de ambas, desequilibrando as noções de Anne, que obviamente sente na nova camareira uma versão mais acessível e menos dura de Sarah. Pois, enquanto a dama utiliza o favoritismo da rainha com objetivos políticos que ultrapassam até mesmo o amor que tem pela vida do próprio marido, o Lorde Marlborough (Mark Gatiss, infelizmente, sempre subutilizado), Abigail tem suas ambições centradas em si mesma. Note como ela chega de mãos vazias ao palácio, sem trazer bagagens, do mesmo modo como seu pequeno quarto parece que nunca absorve a personalidade da moça, permanecendo apenas com a pintura em branco sem vida que simboliza o desapego e a mutabilidade adequados à natureza dissimulada da personagem, que Emma Stone vive com energia para transitar entre as várias facetas da moça, por vezes, não mudando mais do que um olhar.



Empregando uma seleta de músicas clássicas e uma composição dissonante que se utiliza de um rangido crescente que intensifica o tom sombrio da relação das personagens, o roteiro também divide a narrativa em partes pontuadas por letreiros que, ao assumirem uma edição em modo justificado, alardeiam ainda mais a estranheza daquelas interações. E é apenas apropriada a escolha de Skyline Pigeon, do Elton John, para embalar os créditos finais, uma vez que a canção ilustra perfeitamente os pensamentos que devem ter acometido a personagem cujo rosto é um das últimas imagens que nos levam para fora da sala de cinema. De onde saímos com a sensação incômoda de que o que vimos foi cômico por ser estranho, foi divertido por ser perturbador e desconfortável por ser familiar. Como aponta Harley (Nicholas Hoult) em dado momento, “É o que chamam de comentário político”, pois ao tensionar à caricatura, mas sem perder a solidez das relações entre amor, sexo e poder (cada um deles simbolizado de certa forma pelo trio de protagonistas), A Favorita também refresca esses conflitos ao posicionar apenas mulheres à frente dos mesmos, relegando aos homens os papéis secundários, retratando-os como figuras frágeis, cômicas e mesmo patéticas. O que, em última análise, apenas complexifica ainda mais as ambições temáticas do projeto e define, de vez, que Yorgos Lanthimos é um nome para se lembrar.

Nota: 10/10

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