quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

CRÍTICA: VICE


Cuidado: este é um texto de Esquerda, estejam avisados.


Tem gente que ainda fica chocada e se revolta quando descobre que os seus filmes favoritos carregam consigo uma ideologia. Todos os filmes carregam, pois são Arte, e Arte não existe no vácuo. Durante as eleições de 2018, por exemplo, teve fã de Star Wars entrando em parafuso quando descobriu o viés bem à Esquerda da saga. Afinal, como posso gostar de algo se eu discordo da sua ideologia, filosofia ou visão de mundo? Acontece que essa é uma das mais fascinantes nuances da Arte, você não precisa concordar com o que ela diz ou sequer entendê-la para apreciar os seus resultados. Dito isso, para quem se considera de Direita, vai ser difícil gostar de Vice.



Adotando praticamente a mesma estrutura e recursos que havia utilizado em A Grande Aposta, o cineasta Adam McKay retoma a paródia como forma de denúncia. Se naquele filme sobre a crise da bolha imobiliária tínhamos participações como a de Margot Robbie numa banheira e Selena Gomez num cassino usando de exemplos esdrúxulos para explicar os meandros das transações da Bolsa de Valores, aqui quem surge em cena são nomes como Alfred Molina e Naomi Watts para pincelar com piadinhas didáticas a história de Dick Cheney (Christian Bale), político que acabou se tornando vice-presidente dos Estados Unidos na chapa de George W. Bush (Sam Rockwell), dando início a uma das mais sangrentas e longas guerras da História moderna.


Não que McKay fique restringido a essas meras brincadeirinhas, como transformar o menu de um restaurante em um verdadeiro cardápio de opções antiéticas para conduzir o país, ou colocar a âncora de um telejornal para ser comicamente honesta e transparente sobre as diretrizes da sua emissora. Assinando também o roteiro da produção, o realizador pesa a mão na sátira e parece encantado com as próprias piadas, não se poupando, por exemplo, de interromper drasticamente a narrativa mais de uma vez só pela “zoeira”, na falta de um termo melhor. Numa delas ele cria toda uma cena em que Amy Adams e Christian Bale dividem um diálogo Shakespeareano como se fossem Lorde e Lady Macbeth, enquanto noutra ele brinca de terminar o filme no meio do filme.




Mas se tanta “poluição cômica” poderia soar como egocentrismo e excesso por parte do diretor, a verdade é que, por tratar dos bastidores da política estadunidense, os arroubos de piadinhas bobas de Vice acabam soando até mesmo plausíveis e sensatos frente aos absurdos e extremos ridículos a que chegam os personagens abordados - algo que funcionava também com os investidores de A Grande Aposta. O pequeno universo habitado por essas figuras é tão inusitado e distante da realidade rotineira da maior parte da população, que a abordagem extravagante e caricata de McKay acaba sendo, em si mesma, um modo de conversar com o espectador, de tornar aquele “mundo” mais acessível, justamente por retirar a carga de sobriedade com que ele costuma ser retratado. Creio que, em alguns casos, tratar com objetividade e austeridade um certo contexto só porque, o senso comum nos diz que ele deveria ser sério e austero, é, de muitas maneiras, romantizar e maquiar uma realidade bem mais absurda e risível.


E se você discorda que a política pode ser palco das palhaçadas mais ridículas da nossa realidade, basta observar o Brasil de 2013 para cá e todas as reviravoltas, traições, escândalos, golpes, midiatismos e atentados que marcaram a esfera política do nosso país desde então. E ainda assim, apesar da comicidade e da paródia, McKay demonstra grande sensibilidade ao jamais deixar que isso banalize as ações de Cheney ou as consequências destas. E aqui entra o viés ideológico do diretor, que aponta o dedo para o conservadorismo e, em especial, para a Direita republicana dos EUA ao descortinar seus métodos e objetivos no mínimo questionáveis, quando não são apenas repugnantes, passando pela criação da fábrica midiática que é a Fox News e indo até a invasão do Iraque. E McKay faz questão de ligar o espectro ideológico a uma questão de caráter quando encena o suposto momento em que Cheney escolheu ser de Direita: “De que lado está o cara que acabamos de ouvir?”, ele pergunta a um colega estagiário no seu primeiro dia sobre o discurso ganancioso e malandro de Donald Rumsfeld (Steve Carell), “Ele é republicano”, responde o outro, “Então é isso o que eu sou”, finaliza o protagonista deixando claro que, não é com ideias ou princípios que ele se identifica, mas sim com a perspectiva de sucesso e ganhos próprios.


Com uma falta de sutileza similar, McKay também é hábil ao ilustrar os trágicos resultados na vida real que tem as decisões tomadas nos gabinetes quando, com apenas um corte, salta da imagem que traz um dos homens mais poderosos do mundo batendo o pé de nervosismo sob a mesa, para outra de um outro pé tremendo de medo dos bombardeios estadunidenses bem longe dali no Oriente Médio. Da mesma forma, McKay também cuida para enfocar o seu protagonista constantemente de baixo para cima, dando a ele uma aura gigantesca que permeia a produção, além de conferir ameaça a sua presença, um toque esperto que contorna muito bem a personalidade naturalmente mais introspectiva de Cheney - o que não deixa de remeter também à clássica construção feita por Orson Welles do protagonista de Cidadão Kane, filme que surge escancaradamente referenciado no momento em que McKay enquadra Cheney dando um discurso à frente de um telão imenso, que exibe seu rosto.




Retomando a parceria com o diretor, Christian Bale entende que o vice do título deveria soar um homem imponente e perigoso apenas pela sua presença, conseguindo alternar muito bem os modos calmos e sorrateiros com que anda pelos corredores da Casa Branca, com aqueles apenas preguiçosos com que se move pela própria casa quando só tem a esposa (Adams) como espectadora, tal qual no divertido momento que se dirige sem pressa para atender ao telefone. Ajuda, claro, a mudança física impressionante (como de costume) do ator e a maquiagem estupenda que, além de tornar Bale em Chaney, consegue transformar Sam Rockwell numa versão mais realista do Bush filho, do que o próprio Bush filho. Já Amy Adams, colocada em papel semelhante ao que viveu em O Mestre, volta a demonstrar que seu potencial para viver personagens maliciosas está sendo pouco explorado por Hollywood. Enquanto Steve Carell, que em A Grande Aposta vivia um homem pragmático e de princípios rígidos com a ética, aqui não poderia viver figura mais distante dessa descrição, entregando um Rumsfeld bonachão e traiçoeiro cujo sorriso no rosto é a principal arma de atuação - o que, em última análise, só comprova a versatilidade do intérprete.


Terminando ao som da apropriada America, do musical West Side Story, o novo filme de Adam McKay pode soar um tanto bobo, especialmente para uma audiência politizada. Porém, pelo menos do lado de cá da Esquerda, existe uma lição a ser aprendida com isso. Aquela auto-declarada elite intelectual esquerdista, cagadora de regra, ainda se recusa a enxergar que foi justamente a arrogância e a repulsa a uma linguagem menos acadêmica, mais óbvia e superficial, o fator determinante que nos custou as eleições de 2018 para um projeto de fascista - um homem cujas ações como presidente já estão (e desde muito antes de ele se eleger) custando vidas brasileiras, vidas negras, vidas LGBTQs, vidas femininas, vidas pobres e invisibilizadas, tanto quanto e se não mais do que a sangrenta guerra cometida por Dick Cheney, pelos seus asseclas republicanos e por todos os seus eleitores (tão birrentos quanto os bolsonaristas brasileiros) que renovaram a estadia de Bush e companhia na Casa Branca alguns anos depois.


P.S.: Em 10 anos, a Marvel nunca conseguiu fazer uma cena pós-créditos tão boa quanto a que Vice traz ao final da projeção.


Nota: 10/10
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário