quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

CRÍTICA: ENTRE FACAS E SEGREDOS


Como instigar o espectador com uma fórmula de suspense que já era batida na época dos livros da Agatha Christie? Afinal, Entre Facas e Segredos se apresenta como um mistério de assassinato raíz, trazendo todos os elementos clássicos do adorado subgênero “Quem Matou?” (em inglês apelidado de whodunnit), que normalmente envolve um grupo peculiar de suspeitos num cenário sombrio e, no meio disso tudo, um cadáver. De Odete Roitman (Vale Tudo) à Laura Palmer (Twin Peaks), já foram tantas as vítimas e assassinos improváveis, sejam em obras literárias, teatrais ou audiovisuais, que pouco espaço sobrou para a criatividade nesse estilo de trama. Mas eis o plot twist aqui: Rian Johnson.


Responsável por alguns dos melhores episódios de Breaking Bad e pelo excelente Looper, Johnson ficou mais falado quando assinou o roteiro e direção de Star Wars: Os Últimos Jedi - que hoje considero o melhor dos filmes da saga (pode me xingar nos comentários), justamente pela ousadia de criar algo novo em cima de uma história que já tinha seus elementos bem estabelecidos, conseguindo intrigar mesmo o fã mais aficionado daquele universo. E é essa mesma estratégia que Johnson retoma nesse projeto.

Ao se apropriar do formato e da aura dos filmes whodunnit, o cineasta decide inovar em cima dessa fórmula e surpreende por oferecer bem mais do que apenas a solução para a morte do milionário Harlan Thrombey (Christopher Plummer).

Aliás, se esse mistério normalmente seria o ponto central da trama, aqui Johnson resolve entregar o modo como Harlan morre já no primeiro ato. E isso não é nenhum spoiler, pois o roteiro, tal qual o detetive Benoit Blanc (Daniel Craig), parece mais interessado em investigar o contexto e os familiares do ricaço do que propriamente sua morte, que é considerada um suicídio pela polícia. Isso até que o caso é reaberto e todos os Thrombey e seus empregados são reunidos na antiga mansão da família para um dia de interrogatórios.

Formado por figuras como a orgulhosa Linda (Jamie Lee Curtis), esse círculo familiar gira em torno de um império editorial construído justamente em cima dos livros de mistério escritos pelo falecido Harlan. Do patético Walt (Michael Shannon) a extravagante Joni (Toni Collette), todos parecem ter uma motivação para assassinar o velho escritor, uma vez que continuam mamando nos seus lucros enquanto aguardam receber uma parte da herança.

Com uma vasta galeria de suspeitos, vítimas e armas à disposição, Johnson demonstra grande respeito e admiração pelo gênero que o inspirou, encantado em apresentar e explorar com sua câmera os detalhes de decoração da mansão Thrombey, se detendo com especial carinho na sala que exibe obras e monumentos inspirados nos livros de Harlan - e a inusitada guirlanda de facas, além de chamar a atenção do espectador e servir para aumentar a tensão, já que a qualquer instante uma delas poderia ser usada, também remete de forma divertida ao pequeno palco de armas que tem função idêntica no divertidíssimo Deathtrap (1982).

Da mesma forma, Johnson investe com segurança em uma longa sequência que, ocupando boa parte do primeiro ato do filme, enfoca os depoimentos de cada um dos suspeitos, adotando uma estrutura tantas vezes utilizada com maestria por Agatha Christie em seus livros e contos protagonizados por Hercule Poirot e Miss Marple. Inclusive, o Benoit Blanc de Daniel Craig é concebido para se tornar um desses detetives icônicos, como os que povoavam os mistérios de Christie e Sir Arthur Conan Doyle. Desde o modo como o filme o introduz, fora de foco e com o rosto imerso no escuro, até a ideia de trazê-lo brincando com um piano de cauda num canto da sala durante boa parte dos interrogatórios, a aura que vai sendo construída é a de um personagem perspicaz, observador e que não se submete às regras do grupo. O que só torna mais divertido quando, mais tarde, descobrimos que Blanc navega, sim, pela genialidade excêntrica de um Sherlock Holmes, mas também pela sorte atrapalhada de um Jacques Clouseau.

Aliás, seria um erro ignorar que, além de uma homenagem, Entre Facas e Segredos é igualmente uma sátira (ou, no mínimo, uma subversão) dos filmes whodunnit. Ao estilo de Os Sete Suspeitos (1985) ou do hilário Assassinato por Morte (1976), o longa-metragem de Johnson se equilibra entre a reverência respeitosa demonstrada por Kenneth Branagh em Assassinato no Expresso do Oriente (2017) e o absurdismo pastelão de Um Tiro no Escuro (1964). E se, ao observar a mansão de formas góticas do Thrombey, um dos detetives não consegue evitar de dizer que o lugar parece um tabuleiro de Clue, Johnson também resolve filmar os depoimentos, por exemplo, em formato de entrevistas documentais, com direito a legendas e cortes que vão intercalando as versões de cada personagem para revelar as contraditoriedades cômicas naquilo que estão contando uns sobre os outros.

Dessa forma, o filme consegue manter tanto a tensão e a expectativa em relação ao seu mistério central, como também manter um senso de humor onipresente. Aliás, o modo como Rian utiliza a câmera é recorrentemente essencial para conferir humor e dinamismo a sua trama. Se os cortes entre os depoimentos agilizam e deixam divertida a reconstituição da noite da morte de Harlan, os planos chicote (ou seja, que fazem uma panorâmica muito rápida de um ponto para outro do cenário), conferem tanto energia quanto descontração à narrativa, imprimindo uma noção de urgência, ao mesmo tempo em que também brincam com aquilo que revelam na outra ponta. E gosto particularmente como o cineasta brinca com um dos clichês do Cinema Noir quando coloca uma faixa de luz reta sobre os olhos de Meg (Katherine Langford), sinalizando as segundas intenções por trás do telefonema que está fazendo, só para abrir o enquadramento alguns segundos depois e mostrar que ela não estava sozinha fazendo a ligação.

Ainda assim, por mais divertida e imersiva que seja toda a estética e atmosfera criadas por Rian Johnson, aquilo que arremata Entre Facas e Segredos de forma fascinante é a mensagem anti-Trump que vai crescendo nas frestas do seu mistério, conforme os depoimentos e as interações da família Thrombey vão revelando um grupo de pessoas que, de uma maneira ou outra, já nos acostumamos a ver e ouvir em 2019.

Do tio conservador que apoia as políticas fascistas do presidente da república, passando pelo sobrinho incel (Celibatário Involuntário) que fica destilando ódio no Twitter, a galeria de suspeitos é concebida por Johnson para representar as visões políticas das classes média e alta dos Estados Unidos, em especial no que diz respeito a como os estadunidenses tratam os imigrantes. “América para americanos” diz o personagem de Don Johnson, ignorando que mexicanos, paraguaios, brasileiros e demais latino-americanos também são parte da América. Aliás, é sintomático que nenhum dos Thrombey, mesmo os menos conservadores, conseguem chegar a um acordo sobre o país de origem da enfermeira Marta (Ana de Armas) - justamente porque, para eles, do México para baixo é tudo a mesma coisa.

E se, a princípio, parece que Benoit Blanc será o nosso protagonista, Rian Johnson aos poucos subverte também essa expectativa ao colocar Marta à frente da trama - ao ponto de que, em certa altura, já não restam mais dúvidas de que estamos acompanhando a sua história, e não a dos Thrombey. De um modo curioso, Johnson acaba colocando as adversidades de uma mulher imigrante num país tão hostil a essas duas condições, contra o circo criado em torno da morte de um idoso, branco e milionário, que parece gerar muito mais comoção com o seu suicídio do que seria o impacto da notícia sobre crianças enjauladas e separadas dos pais na fronteira dos EUA pelas políticas de Donald Trump.

E ao seguir esse caminho inesperado dentro de um tipo de história tão “branca”, Rian Johnson revela a surpresa mais deliciosa trazida pelo projeto: seu charme tem menos a ver com Agatha Christie e mais em comum com Bacurau. Aliás, o filme brasileiro dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, junto com esse comandado por Johnson, acabam formando uma trilogia involuntária com Parasita, já que os três oferecem uma chance de vingança para classes sociais oprimidas. E que todos os três longas tenham sido lançados em 2019 não é coincidência alguma, e sim apenas outro sintoma dos tempos sombrios em que vivemos e uma prova contundente de como a Arte naturalmente reage à opressão e ao retrocesso pelo mundo inteiro. Afinal, desde já, o plano que encerra Entre Facas e Segredos é um dos mais poderosos e catárticos dessa temporada.


Nota: 10/10


Nenhum comentário:

Postar um comentário