domingo, 20 de janeiro de 2013

AMOR




     Talvez Amor, novo filme de Michael Haneke, possa ser resumido no longo plano que acompanha o idoso Georges (Jean-Louis Trintignant) tentando dar de comer a sua esposa Anne (Emmanuelle Riva), que praticamente paralisada em cima de uma cama devido a um derrame, usa os poucos movimentos que lhe restam para recusar os cuidados do marido. Pois, assim como este momento, todo o filme apresenta-se melancólico, parado, incomodativo e angustiante. E se normalmente estes adjetivos são usados para descrever algo ruim, aqui eu os emprego como elogios, já que causar estes sentimentos é claramente o objetivo do diretor.

     Fadado a tratar da esposa em casa após a mesma lhe fazer prometer que nunca a levaria a um hospital outra vez, Georges é obrigado a assistir não só o crescente deterioramento de Anne, como também de seus próprios sentimentos em relação a ela. Tentando manter a normalidade das situações, enquanto cumprem a rotina silenciosa e vagarosa de um casal de idosos, músicos aposentados, em um antigo apartamento, o universo erudito no qual o casal se confina, não demora a se converter em um mausoléu. Pois logo, tudo que a abertura do filme preza em nos mostrar sobre dos dois, a intimidade, o conhecimento e o bom gosto adquiridos pelo casal durante os seus muitos anos casados, começa a desaparecer junto com as habilidades motoras de Anne, o que torna o desfecho do longa no mínimo compreensivo, pois quase ao fim das duas horas de duração, nada de sua esposa resta no corpo daquela inválida mulher para Georges amar.

     Michael Haneke é um diretor violento. Mas quando eu digo "violência", não me refiro ao mesmo tipo de brutalidade que tomaria conta de uma cena de tortura, ou de luta, tão pouco uma envolvendo armas. A violência presente nos filmes do cineasta é quase sempre conceitual ou sugestiva, portanto, mais agressiva que a maioria apresentada nestes tipos de cenas que citei acima. Em Violência Gratuita, Haneke deixa apenas que escutemos os sons dos tiros que assassinam o filho da protagonista enquanto assistimos a reação da mesma, já em A Fita Branca, o diretor emprega um plano demorado que acompanha um dos garotos tendo de ir buscar a cinta com que será castigado, e ainda nos obriga a ouvir boa parte dos gritos de dor devido à punição que acontece atrás de uma porta. Aqui, Haneke abusa de longos planos que, a princípio, não parecem possuir qualquer relação com a trama, mas que logo se revelam essenciais para o espectador compreender, e acima de tudo, sentir, o ambiente, a rotina e a situação melancólica de seus personagens.


     Afinal, o casal encontra-se na fase final de suas vidas, o que poderia ser feito por Georges se não dedicar-se a esposa? Que outras opções existiriam para o idoso que não isso? E presenciar e entender, conforme o filme passa, que o apartamento torna-se uma prisão para ele é algo que Haneke faz entender com cuidado, tornando sutil esta transformação de lar em cela, quando, por exemplo, mostra de forma fria e sem ritmo as várias pinturas que denunciam a vida culta levada pelo casal, agora apenas quadros pendurados, vazios e despropositados sem alguém para poder parar para apreciá-los. O auge, porém, chega quando o diretor ilustra este conceito de "prisão" com um pesadelo de Georges, onde este, logo ao sair pela porta do apartamento, já se depara com um corredor alagado que o impede de continuar. Ou mesmo quando o realizador emprega dois longos planos envolvendo o idoso e um pombo intruso que insiste em entrar pela janela, no primeiro mostrando o homem libertando-o para voar janela a fora outra vez, e no outro emprestando bastante tempo ao enfocar o mesmo Georges fechando o animal dentro de um dos aposentos e caçando-o com uma toalha. E talvez a própria insistência do animal em invadir o local indique certa falta de vida ao lugar, que tira o receio destes animais de andarem por uma casa povoada. 


     Quando se deparam com alguém paraplégico, com síndrome de Down ou com qualquer um que possua algum tipo de deficiência física ou mental, as pessoas tendem a não olhar se puderem evitar o constrangimento de reparar no problema do indivíduo. Instigando este tipo de sentimento em seu espectador, os longos planos de Haneke não raramente buscam acompanhar os momentos mais desconfortáveis para Anne devido a sua condição, como aquele em que uma enfermeira ensina a Georges como colocar as fraldas na idosa, que a câmera maldosa do realizador acompanha focando o rosto da mesma, ignorando a ação em si, deixando que encaremos a personagem em seu momento de constrangimento, quase como se o diretor desafiasse o seu público a virar o rosto.

     Porém as investidas cruéis de Haneke em causar desconforto em seu espectador só são bem sucedidas graças ao ótimo desempenho do casal de protagonistas. Pois Jean-Louis Trintignant interpreta Georges de forma realista, com um mancar que o homem não hesita em ignorar se a situação acusa uma emergência, incorporando a calma racional com que o idoso lida com todas as situações, o ator consegue fazer a transição entre o Georges preocupado e afetivo para o marido emocionalmente exaurido e impaciente de forma sutil e verossímil. Já Emmanuelle Riva surge destruidora e convincente ao interpretar os sintomas de Anne, seja nas partes do rosto que não consegue mover, nas frases que não consegue dizer e na enorme gama de sentimentos que consegue transmitir apenas com olhares. E repare como apenas com os olhos, Riva transparece a vergonha que toma conta da idosa quando a filha aparece para lhe ver, o constrangimento ao ser virada e revirada na cama por uma enfermeira, a dor e o desconforto quando é maltratada por outra, e enfim o pedido de súplica implícito no modo com que olha para Georges mais ao final.


     E caso você prefira interpretar que o ato de Georges sair porta a fora acompanhado de Anne ao final do longa é uma alegoria para a morte do personagem, que não possuindo mais a esposa como uma corrente para mantê-lo confinado no apartamento, junto com ela, finalmente caminha para fora dali rumo a um lugar melhor, não estará errado e ninguém poderá julgá-lo, já que pensar o melhor para os personagens que acompanhou durante a árdua jornada que é assistir Amor, representaria o mesmo que poder respirar depois de ficar duas horas submerso em um lago frio e escuro. Porém, com um pouquinho mais de fôlego, pode-se dizer que na verdade Georges apenas saiu porta a fora, libertando-se da cela que seu próprio lar havia se tornado, e embora não pudesse vê-la ou conversar com ela, a figura de Anne que o acompanha, seria sozinha, uma alegoria às lembranças e os sentimentos em relação à esposa que o idoso leva consigo ao abandonar o local. Uma interpretação, claro, muito mais melancólica e por isso também a escolhida por mim por ser a mais condizente com o clima do resto do filme. Afinal, como um bom torturador, Haneke não deixaria de causar angústia e desconforto em seu espectador enquanto ainda tivesse ferramentas com que fazê-lo.

NOTA: 10/10





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