segunda-feira, 4 de março de 2013

INDOMÁVEL SONHADORA



     "Eu sou o cara!" diz Hushpuppy (Quvenzhané Wallis) em dado momento deste Indomável Sonhadora, um longa que entre seus muitos méritos, com certeza, tem como o mais brilhante deles a sua pequena protagonista. Misturando alegorias que se mostram harmonicamente em sintonia com a linguagem quase documental adotada pelo diretor Benh Zeitlin, enquanto explora a miserável e quase selvagem rotina do povo habitante d'a "Banheira", o filme se mostra uma obra delicada e épica, ainda que suas escalas e abrangimento sejam tão grandes quanto sua diminuta heroína. E a jornada de Hushpuppy é tão interessante e emocionante quanto a de qualquer herói em uma batalha de proporções descomunais contra exércitos e criaturas malignas. E embora totalmente ciente da linguagem cinematográfica (ainda que sua câmera inquieta possa vir a esconder isto), Zeitlin prefere passar boa parte de seu próprio longa, como nós os espectadores, apenas observando uma performance admirável que se dá em meio a uma assombrosa direção de arte.


     Hushpuppy e seu pai, Wink (Dwight Henry), moram em um vilarejo paupérrimo as beiras d'água, onde um povo completamente desligado da sociedade moderna vive sua própria rotina e cultura. Certo dia, atingidos por uma forte tempestade, os habitantes daquela cidade passam a viver de forma ainda pior, ilhados em seus barracos de forma a terem de sobreviver à duras penas, já que se recusam a deixar o local e debandarem para a cidade grande.


     Alguns poderão dizer que a direção de Benh Zeitlin, baseada em uma câmera de mão inquieta, é apenas uma reprodução de um estilo que cada vez mais se torna marca registrada de filmes independentes ou de baixo orçamento. Estas pessoas certamente já terão entrado no cinema com tal preconceito, e assim, pouco caso farão da linguagem do diretor ou de qualquer análise feita em cima desta. Pois Zeitlin usa com propriedade a câmera "documental", que traz uma atmosfera realista e dura para a sua película. E a palavra "película" que emprego aqui não é ao acaso, já que o uso de uma com um grão grosso e de pouca definição é obviamente proposital por parte do diretor, algo que traz uma sujeira incomodativa para a imagem final do filme, uma imperfeição calculada que causa uma angustia necessária para sentirmos um pedacinho do universo onde vive Hushpuppy. Mas apenas sentir este mundo, não é o suficiente para Zeitlin e seu diretor de fotografia, Ben Richardson. Para eles o ideal é sempre nos colocar no lugar da pequena menina, e assim, ambos empregam uma câmera baixa, sempre ao nível dos olhos da garota, o que se por um lado torna ainda mais inquietante acompanhar a narrativa de Indomável Sonhadora, por outro também é eficaz em nos mostrar o mundo visto através do ponto de vista da protagonista. Com a mesma segurança, a dupla emprega planos mais estáveis e bem trabalhados quando resolve enfocar alguma das alegorias representadas pelos monstros que a menina vive anunciando a eminente chegada, diferenciando assim, claramente a fantasia do real. E é lindo de se constatar como Zeitlin trata a cena em que estes dois mundos se chocam, em um belo encontro de Hushpuppy com as tais criaturas, onde o diretor aplica um plano estabilizado e um zoom feito em lente Tele que deixa a textura da composição de quadro, algo muito mais realista e cru, juntando assim perfeitamente também as duas linguagens. E só por isso, sua indicação a melhor direção já seria louvável.


     E tão aplaudível quanto, é a performance de Quvenzhané Wallis, que não se intimida e mostra presença, carisma e versatilidade ao navegar pela jornada emocional de Hushpuppy. A garota é tão independente, que mesmo tendo uma rotina já estabelecida e dependente com seu pai, possui sua própria casa e não tarda em se virar sozinha quando Wink some repentinamente. nunca hesitante, Wallis encarna com veracidade a postura de uma menina criada para resolver seus próprios problemas, sendo ela a catalisadora de vários eventos dentro da trama e na aldeia. Hushpuppy é forte e determinada, porém, o mais belo em sua composição é que mesmo assim, nunca deixa de ser uma criança. Empregando um ar inocente a garota quando esta fantasia escutar sua falecida mãe conversando com ela, ou ao se entregar com um divertimento infantil a uma corrida em direção a água com as amigas, Wallis nunca deixa de ser e nem esquece que "Puppy"(o filme nos leva a conhece-la tão bem, que é quase impossível não lhe inventar um apelido carinhoso) é uma criatura no início de sua vida, e atenta que o aprendizado e as novas descobertas da personagem podem lhe render alegrias (vide a cena em que aprende a comer caranguejos) ou medos (a sequência da tempestade se encaixa aqui).


     E o mundo que moldou esta incrível personagem é construído pela direção de arte de forma assombrosa. Desde a disposição caótica dos objetos (e pedaços deles) dentro de cenários fechados, passando pelo barco de Wink constituído em sua maior parte por uma caçamba de caminhonete, até o barraco completamente revestido de estacas de madeira onde se abrigam os sobreviventes da tempestade, todo o design de produção do longa não só é admirável como assusta pelo seu grau de preciosismo, e portanto, realismo empregado. Nunca deixamos de acreditar que aquele lugar existe e principalmente que seus personagens são na verdade, pessoas reais acostumados a viver naquelas condições. E neste ponto, a trilha sonora composta por Dan Romer e pelo próprio Zeitlin, traz um equilíbrio apropriado para a obra ao investir em melodias presentes e fantasiosas, que ressaltam acima de tudo, que estamos acompanhando um filme, por mais que todo o resto tente trazer nossos pés para o mais próximo do chão possível.


     É justamente ao encontrar o ponto certo entre o fantasioso e o real que o longa acerta em cheio, já que esta intersecção se dá justamente em Hushpuppy, que representa uma mescla admirável de uma criança que filtra sua realidade e a projeta em cima de seus próprios conhecimentos. E a cena onde a garota constata com uma irrepreensível normalidade que caso seu pai não retorne rápido, ela terá de comer seus bichinhos de estimação, ilustra perfeitamente o choque destas duas versões de mundo, separadas apenas pela visão de uma pequena menina. 


NOTA 10/10


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