A primeira noite da quadragésima
terceira edição do Festival de Cinema de Gramado teve como grande atração a
estreia em solo nacional do longa-metragem Que
Horas Ela Volta? - anunciado recentemente como fora de competição -
estrelado por Regina Casé. Precedido do curta-metragem da Mostra Competitiva de
Curtas Brasileiros, Bá. E o que se
mostrava uma abertura leve até então, ganhou contornos mais sombrios depois do
intervalo com o curta-metragem Como São
Cruéis os Pássaros da Alvorada - também fora de competição - e o longa mexicano
En La Estancia – da Mostra
Competitiva de Longas-Metragens Latinos.
Bá é um trabalho sensível que acaba conversando de forma sutil com
o longa-metragem exibido depois dele. Mostra a relação de uma família oriental
no Brasil quando a avó – batchan em japonês – se muda pra casa deles, alterando a
rotina. Enquanto o diretor Leandro Tadashi mostra o desgaste dos demais
com a situação, que jamais transparece ser tão horrorosa assim, o texto se
concentra mesmo é no menino Bruno, que tem o jardim onde costumava jogar bola
invadido pelas centenas de vasos de flores da sua bá. É bonitinho então ver os
dois aprendendo a conviver juntos, o membro mais novo e o mais velho da
família,a simbologia das duas flores no mesmo vaso, etc. Mas é isso, embora
Tadashi tenha elogiado sua protagonista quando subiu ao palco, Yuriko Miamoto Shimata, ele mesmo não
dá espaço suficiente para que ela ao menos seja o sal da produção. Sim, bá tem
bastante tempo em tela, mas não muita liberdade.
O que iria contrastar
radicalmente com o último filme da noite, onde o diretor Carlos Armella,
justamente ao dar liberdade a seu ator sênior, Jesus Vallejo, consegue uma
interpretação tão surpreendente que engana nos primeiros minutos. Trata-se de En La Estancia, que tem produção
executiva de ninguém menos que Alejandro González Iñárritu. Um projeto
incomodativo, um tanto maçante no seu desenrolar lento e muitas vezes
introspectivo, mas que parece cada vez melhor enquanto penso mais nele.
Dividido em três partes
distintas, 1 – Espaço, 2 – Tempo e 3 – La Estancia o longa assume diferentes abordagens em cada uma
delas. Primeiramente se faz refém do ponto de vista subjetivo da câmera
filmadora do documentarista Sebastian (Waldo facco) – e por isso a performance
de Vallejo impressiona, nos fazendo questionar se trata-se de uma ficção ou de
fato um documentário – com uma fotografia crua e irregular em enquadramentos. A
segunda parte se entrega a uma abordagem mais poética, escolhendo apenas os
planos estáticos, com as cores tratadas na pós-produção e repleta de imagens
enigmáticas. Já a terceira traz enfim uma abordagem narrativa comum, ou melhor,
“comum”, já que apresenta alguns planos belíssimos em sua composição.
A história gira em torno de
Sebastian e Juan (Gilberto Barraza, que subiu ao palco apresentar o filme,
sendo apenas por isso que tive certeza de que o Festival não havia se enganado
quanto ao gênero de ficção especificado na divulgação). Quando o primeiro chega
ao vilarejo abandonado onde vivem o criador de cabras e seu velho pai
(Vallejo), ele dá início a um documentário sobre os dois, prometendo voltar
pra terminar seu filme em breve. Isso acontece na terceira parte, quando
Sebastian encontra o túmulo de Vallejo e nenhum sinal de Juan. Ele e sua esposa
grávida decidem ficar então e esperar pelo retorno do homem.
As três abordagens acabam
refletindo as três gerações vistas em tela e discutindo suas próprias visões
sobre o lugar, chamado de La Estancia: um atrativo artístico, um lugar repleto
de sentimentos, ou apenas o palco de uma história comum. O final – muito tenso,
aliás - encontra uma rima sutil e interessante com o começo da história, e
embora deixe um gosto muito amargo na boca, En
La Estancia não merece reprovações uma vez que causar desconforto é um de
seus objetivos mais claros.
O que me leva ao curta-metragem
metragem que o precedeu, Como São Cruéis
os Pássaros da Alvorada, que se embasa em uma linguagem entre Lars von
Trier e... Algo. Também trata-se de um projeto que procura incomodar o
espectador, e detesto ver pessoas aplaudindo uma comédia que as fazem rir, um
drama que as fazem se emocionar, mas não um filme desses que as deixam
inquietas e impacientes, quando esses são exatamente os sentimentos que o
projeto pretendia transmitir. Sim, o curta é confuso, é indeciso e a bem da
verdade é que parece que não sabe a que veio, mas é inegável que o diretor,
João Toledo, saiba o que está fazendo em termos de abordagem.
Pra encerrar, o filme de abertura
do Festival foi o aguardado Que Horas Ela
Volta? de Anna Muylaert e que traz Regina Casé como protagonista. Não só o
projeto mais “badalado” da edição desse ano, o longa faz jus ao burburinho em
volta dele e se revela uma narrativa muito equilibrada, que traz o cômico e o
sensível em iguais parcelas, transitando entre um e outro de forma orgânica. O
roteiro nos leva pra dentro da casa de uma família classe média alta em São
Paulo, onde Val (Casé) é a governanta e responsável por Fabinho desde que ele
era um menino - Michel Joelsas, que já havia participado do O Ano Que Meus Pais Saíram de Casa, que
tem roteiro de Muylaert. Porém, quando a filha de Val, Jéssica (Camila Márdila),
resolve vir prestar vestibular na capital do estado e se hospedar com a mãe no
casarão, as coisas se complicam com a dona da casa, Bárbara (Karine Teles), uma
madame classista e condescendente.
Filmes como esse de Muylaert são
importantes já pela proposta, e tornam-se ainda mais relevantes pela
acessibilidade. Primeiro a cineasta aposta em uma dinâmica clara entre as três
personagens principais: tem a que se acha inferior, Val; a que se compreende
superior, Bárbara; e enfim a que exige ser igual, Jéssica. Depois, ela ainda
pincela toda a narrativa com toques de humor que vendem facilmente a parte
emocional e séria do projeto. Afinal, Anna tem o compromisso arriscado nas mãos
de discutir um tema tão em pauta atualmente, quando pode-se notar uma abertura
muito maior dos recursos educacionais, econômicos e trabalhistas para as
classes mais baixas, enquanto uma minoria que detém a maior parte do capital se
recusa a dividir espaço de luxo com a população pobre que está ascendendo.
Nesse ponto, depois de
assistirmos Val consolando Fabinho em diversos momentos, é muito divertida e
honesta a sequência em que o próprio garoto consola Bárbara quando essa é
confrontada com uma vitória de Jéssica que ela duvidava ser possível para um
pobre. Assim, Muylaert põe o preto no branco. Literalmente até, quando faz uma
analogia com xícaras de café e pires de cores opostas que se equilibram ao
serem colocados juntos. Não sem antes preceder esse simbolismo com belas
composições que enquadram o Doutor Carlos (ninguém menos do que Lourenço
Mutarelli) entre as paredes de sua poderosa mansão, sozinho, enquanto contrapõe
isso ao plano que traz Val enquadrada na janela de um ônibus lotado.
Teles e Casé roubam a atenção com
seu antagonismo, e enquanto a primeira desperta com facilidade a repulsa com
seus modos incomodativamente polidos, a segunda esbanja carisma e ganha a
torcida logo. Aliás, preconceitos deixados de lado, viu? Não é porque Regina
Casé apresenta programas na Globo que ela não possa ser uma boa atriz, algo que
já havia provado ser antes. Aqui, ela demonstra um estudo cuidadoso de seu
personagem com seus modos broncos e o seu jeito de olhar de baixo pra cima,
costume com certeza adquirido com os anos de serventia. Aliás, Que Horas Ela Volta? é o filme sobre os
embates classistas que Histórias Cruzadas
queria ter sido sobre os embates racistas. Não à toa ambos tenham como
protagonistas o mesmo tipo de trio de mulheres. Mas aqui não é preciso se
entregar a maniqueísmos baratos, nem forçar situações como se toda a história
já não fosse comovente por si. Muylaert entende a opressão discutida no roteiro e
não precisa força-la goela abaixo no espectador. Talvez se alongue um pouco
demais no final, depois de encontrar o plano que era narrativa e simbolicamente
perfeito para encerrar o projeto, mas faz valer os minutos a mais e o gosto no fim é de que
a mensagem foi transmitida com sucesso. Mal espero para que o projeto atinja as
salas comerciais.
Bá – Nota: 6/10
Que Horas Ela Volta? – Nota: 9/10
Como São Cruéis os Pássaros da Alvorada – Nota: 5/10
En La Estancia – Nota: 8/10
Nenhum comentário:
Postar um comentário