sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

ARMAS NA MESA


Em outra realidade, Jessica Chastain teria sido indicada a todos os principais prêmios de Melhor Atriz por sua performance em Armas na Mesa. Infelizmente, trata-se de um filme que descortina o mundo sujo por trás da bancada das armas no Congresso estadunidense, o que explica a produção não ter conquistado popularidade ou investimento suficientes para chegar às principais premiações – o acesso às armas de fogo por lá é garantido pela Segunda Emenda, que é protegida com sangue (literalmente) pela indústria armamentista. Espécie de House of Cards focado nos lobistas, o longa é habilidoso ao lidar com o xadrez político tanto no plano midiático quanto naquele que se desenrola por baixo dos tapetes, embora apresente uma trama menos complexa e mais óbvia do que gostaria – e se o projeto nos convence de sua inteligência, é devido a sua protagonista e um elenco que leva seus personagens a sério.


Elizabeth Sloane (Chastain) é uma lobista talentosa que vive para a sua carreira. Depois de anos flertando com os barões da indústria bélica, a empresa para a qual trabalha finalmente tem a chance de representá-los junto aos senadores. Porém, sendo contra a ideologia de seus clientes, ela passa a representar uma firma concorrente que está tentando emplacar um adendo à Segunda Emenda, que exigirá aprovação psicológica para as pessoas que pretendam comprar armas de fogo.

Ora, a princípio a questão parece até algo imbecil de se discutir, pois como aponta Elizabeth em dado momento, se é exigido avaliações completas para indivíduos em busca de uma carteira de motorista, porque alguém pode simplesmente comprar uma arma apenas com sua identidade em mãos? Entretanto, seria ingenuidade pensar que as liberdades garantidas pela constituição são realmente a motivação por trás dos ideais conservadores, e isso nos Estados Unidos, aqui no Brasil e em qualquer lugar. Os interesses são puramente econômicos, e o Capital não enxerga vítimas, mas lucro. Um tiroteio em uma escola não é uma tragédia que poderia ser prevenida, mas um efeito colateral, uma margem de erro aceitável. E em última análise, trazer os principais argumentos em torno dessa disputa e expor de forma didática como, no final, é o dinheiro que move essas tramitações, é um dos acertos de Armas na Mesa.

Por outro lado, o filme muitas vezes força a barra pra chegar onde quer – e o desfecho em si, por exemplo, não incomoda, e acho até bonitinho o seu otimismo sonhador, mas o caminho até ele é pavimentado com elementos desnecessariamente fantasiosos que, não raramente, quebram a sobriedade tão rígida da narrativa. E se as primeiras cenas trazem diálogos intrincados e propositalmente complexos sobre as estratégias de Elizabeth, posteriormente o longa parece querer flertar com alguns dos 007s mais cafonas ao introduzir uma “barata espiã”, que pode ser controlada remotamente para servir de escuta. Ou pior, quando, coincidentemente, um dos lobistas se envolve numa situação em que uma arma de fogo acaba sendo crucial em um espaço público. Além disso, por mais que Jessica Chastain consiga convencer que Sloane é uma mulher de intelecto singular, suas estratégias parecem funcionar mais devido à estupidez de seus adversários do que pelos méritos de sua inteligência – e mais de uma vez o filme nos deixa espiar os “vilões” tendo ataques de nervos no “covil” quando algo dá errado.

A atriz, aliás, foge do estereótipo da mulher fria de negócios (que, na verdade, é exatamente o tipo escrito pelo roteiro) e consegue imprimir uma energia palpável na protagonista. Não só acreditamos que Elizabeth não tem outros interesses se não os profissionais, como também compramos completamente que ela se diverte com aquilo tudo, e isso porque Chastain é hábil ao transparecer o prazer que sua personagem tem de estar "disputando o jogo". E ajuda, nesse sentido, que seja auxiliada por um elenco afinado de coadjuvantes; de Michael Stuhlbarg como seu rival lobista (que graças ao ator soa mais inteligente do que realmente é), até Mark Strong (austero na medida certa) e passando ainda por John Lithgow (sempre interessante como uma figura opressiva). Da mesma forma, a fotografia cinzenta e dessaturada ajuda a compor o tom de frieza dos escritórios e tribunais de Washington por onde perambula a tal Miss Sloane, não só impregnando a narrativa com crueza, como também compondo aqueles ambientes como partes do mesmo tabuleiro.

Amarrando todas as suas pontas e satisfazendo o espectador com um afago na saída, Armas na Mesa é relevante na mesma medida em que pode ser prejudicial às questões que levanta. Por um lado propõe a discussão em torno da posse de armas de fogo de forma divertida em um thriller político que, tropeços à parte, se leva a sério o suficiente para funcionar; por outro, traz um otimismo ingênuo e anacrônico sobre um sistema cínico que, hoje, mais do que nunca, vemos falhar em proteger os interesses dos seus cidadãos todos os dias (e se você estiver lendo isso daqui uns 20 anos, espero que Donald Trump não tenha instaurado uma ditadura nos Estados Unidos e que Michel Temer já esteja, no mínimo, aposentado).



NOTA: 7/10


Um comentário:

  1. Me preocupa ver um certo desvalor às performances de Chastain e ela carregar isso com seus bons filmes, que praticamente ficam incólumes.

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