segunda-feira, 9 de julho de 2018

CRÍTICA: OS INCRÍVEIS 2


Um dos elementos mais incríveis (han?) dos filmes do diretor Brad Bird reside no seu talento aparentemente infalível para criar sequências vibrantes e cheias de energia. Talvez por ter feito carreira comandando animações, o cineasta aprendeu cedo que os desenhos animados, 2 ou 3D, abrem portas para uma linguagem completamente diferente das produções live-action (com atores de carne e osso). Em Os Incríveis (2004), por exemplo, isso ficava óbvio pelo modo como Bird movia sua câmera pelos cenários animados de forma absurda, sem se prender às restrições que seriam impostas a uma câmera de verdade num set real - e mesmo quando adotava uma gramática mais convencional, seus quadros eram belos ou chamativos pela composição ou por algum outro elemento de cena.


Tá, mas por que estou falando desse cara se a galera esperou 14 anos por Os Incríveis 2 independente de quem dirigiu? Acontece que o sucesso de Os Incríveis, 1 e 2, só pode ser explicado através de Brad Bird.



Porque quando falamos de um filme live-action, principalmente os blockbusters de super-heróis que são cheios de efeitos visuais, é normal que, lá pelas tantas, estejamos observando alguma luta ou perseguição de modo estritamente passivo. Ou seja: reconhecemos o que está acontecendo, podemos até nos engajar emocionalmente, mas é inevitável que sejamos momentaneamente tirados da narrativa ao constatar o óbvio: aquilo é tudo feito pelo computador. Aliás, esse era um dos segredos de Mad Max: Estrada da Fúria, não é? Muito do que vemos no filme de George Miller é feito “à mão”, e pode parecer besteira, mas essa materialidade é uma ferramenta poderosa para imergir o espectador  - e isso é um mérito que o CGI ainda não conseguiu tirar dos efeitos práticos.


Entretanto, esse conceito se inverte quando falamos de animações, especialmente daquelas que não buscam traços mais realistas. Isso é, a audiência já entra para assistir o filme com parâmetros de suspensão de descrença bem mais flexíveis, e Brad Bird é um realizador que demonstrou entender isso desde seu primeiro longa-metragem, o excelente O Gigante de Ferro (1999). Note, por exemplo, a cena em que a Mulher-Elástica persegue um trem montada numa motocicleta e perceba os posicionamentos e movimentos de câmera escolhidos por Bird. Há desde closes fechados no seu rosto que, sem cortes, se abrem para planos abertos da ação, como aqueles que observam suas manobras mais inusitadas seguindo-a pelas costas e pelos lados em cenários que, fossem reais, uma câmera de verdade jamais conseguiria acompanhar - já que essa aqui atravessa janelas, pula de prédios e se equilibra em parapeitos junto à personagem.


E não só isso, Bird também é eficaz simplesmente ao cortar de um plano a outro, pois quando não é a sua câmera que está fazendo um movimento interessante, são os objetos dentro de quadro que se movem ou se posicionam harmoniosamente - e os raccords (quando um elemento tem continuidade no próximo plano) não só ajudam a dar dinamicidade à narrativa, como sua abundância é possibilitada graças ao uso que o filme faz dos poderes dos heróis, especialmente a Mulher-Elástica, cujas partes esticam o suficiente para surgirem em um enquadramento diferente, ou Voyd, nova personagem que, ao criar pequenos portais dimensionais, torna vários dos embates muito mais surpreendentes.


Retomando os eventos do longa anterior precisamente de onde eles pararam, Os Incríveis 2 deixa os personagens do título sem casa e desesperançados depois da luta com o Escavador. Abandonados de vez pelo governo e, ainda ilegais, a família Parr (ou Pêra em português) é abordada por dois irmãos milionários que querem fazer jogadas de publicidade para trazer os supers de volta a uma boa luz da opinião pública. Demonstrando alinhamento com a tendência atual de cooptar movimentos sociais para dentro de grandes produções, a trama escolhe Helena (a Mulher-Elástica) como o rosto desse novo empreendimento, obrigando o Senhor Incrível a ficar em casa cuidando das crianças enquanto ela sai trabalhar, numa óbvia inversão dos típicos papéis atribuídos ao marido e a esposa donos de casa.


Aliás, esse troca-troca fica ainda mais salientado graças a outro elemento visual muito típico dos filmes de Brad Bird, que é essa sua obsessão pela estética dos anos 1960 já observada em Ratatouille (2007) e Tomorrowland (2015) também. Embora se passe num tempo indefinido em que tanto heróis quanto vilões dispõe de tecnologias avançadíssimas, é divertido notar como o design dos aparelhos, os figurinos e mesmo os objetos de cena remetem claramente a um estilo sessentista - além de conceitos do futurismo típico de meados do século passado, em que mansões teriam funções de decoração bregas controladas remotamente ou carros que podem voar e navios que podem planar etc.


A coisa é que os anos 1960, em especial aqueles vividos nos Estados Unidos, experimentaram uma onda conservadora em resposta aos movimentos liberais vindos de minorias negras, femininas e LGBTQ, além daqueles em que convergiam os ideais políticos anti-guerras. A ideia de família com o homem saindo de carro novo para o trabalho dos sonhos enquanto sua esposa sorridente ficava em casa cuidando das crianças nunca ficou tão carimbada numa época como ficou naquela - e a propaganda foi um agente seminal nesse processo, ainda mais com a disseminação de novas mídias como o rádio e a televisão. E já que nenhuma estética deixa de carregar consigo um contexto, esse trazido por Os Incríveis 2 acaba sendo benéfico demais aos temas que propõe debater. E por mais que eu tenha elogios para as sequências de ação e a qualidade técnica de animação da Pixar, provavelmente um dos momentos mais marcantes do novo filme do estúdio é aquele em que a Mulher-Elástica conversa com sua nova investidora, Evelyn, sobre suas ambições frente aos homens com quem trabalham juntas, a primeira com o marido, a segunda com o irmão - e falando em méritos de animação, acho elegante como, nessa mesma cena, Helena usa seus poderes casualmente para esticar o braço e colocar um copo sobre a mesinha de centro, evitando se curvar para frente como faria qualquer outra pessoa, demonstrando uma atenção dos animadores não só à perfeição de texturas e movimentos, como também a quem são aqueles personagens e quais dinâmicas estabeleceram com o mundo a sua volta.


Aliás, se abusando do estilo de cores saturadas e chapadas dos designs dos anos 1960, o filme também concebe o figurino de um dos personagens de modo que podemos, através das roupas, prever uma reviravolta envolvendo suas motivações. O que me leva a Edna, dublada na versão original pelo próprio Brad Bird, que por sua vez, atesta grande maturidade ao dosar a presença da personagem. Ora, seria o impulso de qualquer estúdio e cineasta pegar um personagem que funcionou tão bem antes e explorá-lo ao limite (quem sabe dar um filme só pra ele? Cof cof Minions cof cof), mas Bird resiste à tentação e a participação da estilista é suficiente para divertir, impulsionar a trama para frente e ainda deixar saudades. Da mesma forma, o roteiro utiliza Zezé, um elemento fácil de humor, sem cair num limbo de ficar numa piada só - os vários poderes do bebê tornam suas intervenções na trama sempre imprevisíveis e, por isso, aguardadas.


Além de disso Os Incríveis 2 também se beneficia de ter de volta o ótimo Michael Giacchino como compositor. Se anteriormente sua trilha era parte da alma daquele universo, com suas composições jazzísticas remetendo aos filmes de espionagem estilo James Bond, aqui elas conseguem ser ainda superiores - a dramaticidade de uma emboscada envolvendo helicópteros é salientada pelo modo espetacular como seus acordes em metais de sopro casam com a fotografia noturna urbana para evocar o desamparo e a vulnerabilidade da Mulher-Elástica nessa sequência. E ainda que muitas dessas situações sejam recicladas do filme anterior, o novo filme da família Incrível as repagina com frescor suficiente para se tornar não apenas uma continuação válida e imensamente divertida, como também relevante.


Nota: 9/10


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