terça-feira, 29 de janeiro de 2019

CRÍTICA: CREED II


Certamente que o principal músculo envolvido no sucesso das mais de quatro décadas da série de filmes Rocky, é o do coração. Sempre mais preocupados em desenvolver as lutas enfrentadas pelo boxeador do lado de fora do ringue, os longas protagonizados por Balboa jamais usaram do espetáculo de violência como um atrativo sádico por si mesmo, procurando explorar a psique do lutador título na tentativa de compreender suas relações e porque, afinal, é apenas entre as quatro cordas que consegue se expressar. Não estou dizendo que seus filmes sempre conseguiram entregar esse esforço da maneira excepcional que se vê em Rocky, Um Lutador (1976) e Rocky Balboa (2006), houve os trôpegos Rocky II (1979) e Rocky V (1990), além dos quase intragáveis Rocky III (1982) e Rocky IV (1985). O que me traz até este Creed II, cuja eficiência é tão notável que, ao resgatar elementos centrais do desastroso filme de 85, quase o faz parecer um bom prelúdio.

Sequência de Creed: Nascido Para Lutar (2015), o longa volta a ainda refrescante ideia de trazer o antigo protagonista e ex-personagem título da série como um coadjuvante, agora cedendo lugar no centro do palco (ou seria do ringue?) a Adonis (Michael B. Jordan), filho de seu rival e melhor-amigo, Apollo Creed. E se antes essa relação era um mero elo para ligar Adonis ao seu mentor, Rocky (Sylvester Stallone), agora ela se torna ainda mais relevante quando o lutador Ivan Drago (Dolph Lundgren) retorna à Filadélfia, mais de 30 anos depois dos tristes eventos de Rocky IV, e desafia o jovem Creed a enfrentar o seu filho, Viktor Drago (Florian Munteanu). Frente ao peso simbólico desta luta em particular, as relações de Adonis com seu amigo e treinador ficam abaladas, uma situação agravada quando o pugilista descobre que precisa lidar com novos desdobramentos de seu relacionamento com a cantora Bianca (Tessa Thompson).


Diferente do longa anterior, Creed II não conta com Ryan Coogler na cadeira de direção, uma vez que o cineasta foi dirigir Michael B. Jordan em Pantera Negra. Despontando nos últimos anos através do excelente e revoltante Fruitvale Station, e seguindo no currículo com Creed e daí para o já popular herói da Marvel na terra de Wakanda, Coogler se alavancou demonstrando, sim, um ímpeto por representatividade negra nas telonas, mas para além disso, provou ser capaz de sensibilidade e apuro audiovisual, algo que marcou bastante o outro filme. Agora quem assume o projeto é o desconhecido Steven Caple Jr., passando longe dos floreios do seu antecessor. Competente e, mais do que isso, promissor, Caple ainda assim emana uma certa crueza que Coogler já havia vencido em Creed, e quando digo isso, não é ao plano sequência da primeira luta de Adonis ou à corrida/homenagem do mesmo pelas ruas da Filadélfia a que quero remeter.

Tenho mais em mente momentos como aquele em o protagonista assiste a projeção de uma das lutas do pai, Apollo, ou aquele ainda que traz ele e seu mentor, Rocky, à beira das escadarias adotadas como palco tantos anos antes pelo velho lutador.

Mas se falta a Caple um pouquinho mais da ousadia que tinha o seu colega, ainda assim é inegável que o novato consegue criar momentos que oscilam com segurança entre o delicado e o divertido, como um sensível pedido de casamento ou um jantar que resulta numa notícia inesperada, sem contar que o realizador se sai particularmente bem quando quer sugerir perigo, estabelecendo a tensão apenas por revelar a presença de um personagem colocando-o sentado de costas para a câmera, ou, como faz noutro instante, por mergulhar em sombras o que era para ser uma mesa de jantar vitoriosa. Além disso, Caple é habilidoso ao compor alguns planos e enquadramentos, e gosto especialmente de como ele introduz Rocky na trama, não só encoberto pela escuridão, como também refletido de longe num espelho, quase como se o vulto que vemos fosse parte da consciência de Adonis.

Voltando a ser escrito por Sylvester Stallone, indicado ao Oscar de roteiro pelo filme original de 1976, e que tinha participado apenas em frente às câmeras no longa de 2015, Creed II resgata um pouco da estrutura de Rocky IV, algo que o próprio Rocky já trata de alertar em algum ponto do primeiro ato, relembrando que, depois da brutal derrota de Apollo nos EUA, ele teve de ir pessoalmente até a (então) União Soviética (agora, claro, a Rússia) para vingar o amigo. Com isso, já dá pra prever que arco Adonis irá percorrer aqui. Entretanto, como apontei lá em cima, esse universo sempre manteve as lutas mais como um pano de fundo, apesar de servirem como “respiros de ação” em meio à montagem, além de catalisar pontualmente para o espectador os conflitos dos protagonistas. Ou seja, o que interessa não é que luta vai ser perdida ou até qual outra ela vai levar, e se isso é previsível ou não, mas sim os desdobramentos que ligam um combate ao outro - ainda que, quando estes são o foco de alguma sequência, os efeitos sonoros e as ótimas coreografias acabam dando conta de demonstrar a eficiência dos golpes e o perigo envolvidos para os desafiantes.

E se uma das falhas mais aberrantes do filme de 1985 era a maneira como pintava de forma caricatural o vilão interpretado por Dolph Lundgren, aqui é justamente essa desumanização que acaba tornando o aprofundamento dos antagonistas tão interessante. Vivido quase que de forma muda por Florian Munteanu, Viktor, por exemplo, é apresentado como uma besta desenfreada, uma máquina de combate implacável e sem sentimentos. Porém, a decisão de Caple de abrir a projeção apresentando a dura rotina de treinamento do pugilista ao lado do pai, sugere para o espectador uma ligação emocional complexa entre o jovem e seu progenitor. Aliás, aquilo que o roteiro nos permite vislumbrar do lado dos “vilões”, vai aos poucos construindo uma relação da qual podemos inferir quase um todo: a amargura de Ivan, que provavelmente criou o filho enchendo a cabeça do menino com histórias sobre humilhação e revanche, e a sua gradual (e surpreendente) percepção de que um sentimento de ódio e repulsa não é o que deseja para o seu garoto.

Do outro lado, Michael B. Jordan demonstra um Adonis já mais maduro e menos explosivo, ainda que tão genioso quanto aquele que nos foi apresentado antes. Capaz de conferir ferocidade na postura da mesma forma como convence o espectador de sua doçura, Jordan estabelece uma dinâmica afinada com Tessa Thompson, com quem divide diálogos ainda mais azeitados do que aqueles que troca com Sylvester Stallone, ao contrário do que seria esperado. Thompson, inclusive, ganha uma personagem que poderia muito bem ser apenas a “namorada do herói”, mas muito ao contrário disso, sempre demonstra possuir sonhos e objetivos próprios, algo que a atriz é hábil ao demarcar como a carreira e os próprios demônios são algo de tanta importância para Bianca quanto o seu relacionamento com Adonis - e achei econômico e eficaz o modo como o texto configura um enfrentamento entre o protagonista e um publicitário nos camarotes de um show da moça, demonstrando que o namorado é um fã tão assíduo do trabalho dela, quanto acontece quando é ele que está em cima de um ringue. E se não por mais nada, esse detalhe ao menos denota uma parceria harmoniosa regendo o casal.

Já Stallone volta sempre com frescor a um personagem que, justamente por conhecer tão bem, ele poderia interpretar de olhos fechados. Mas não, o ator não cansa de investir nos maneirismos de Rocky e seu modo de se mexer, com os ombros balançando como se ainda estivesse lutando, assim como a sua tendência a manter os pés dando passinhos pra lá e pra cá. Além disso, o modo simplório como constrói suas frases continua inferindo uma inocência encantadora ao personagem, ainda que jamais denote ingenuidade - e o ator consegue passar a sua carga de sabedoria através de um quase onipresente olhar melancólico e dos modos rotineiros com que parece interagir com tudo, como se nada pudesse surpreendê-lo - até mesmo as duras acusações de seu pupilo, em dado momento, são recebidas com uma expressão de tristeza, sim, mas uma tristeza que parece ser familiar a ele. E de alguma forma faz muito sentido que, mesmo ao final da segunda década do Século XXI, Rocky ainda seja um adepto das agendinhas telefônicas de bolso.

Embalado ainda pela trilha empolgante de Ludwig Göransson, que novamente mistura e traz ainda mais marcado o tema icônico de Bill Conti em meio às suas próprias composições, Creed II é um projeto tão repleto de personagens carismáticos que o sentimento ao final, como aconteceu no desfecho do longa de 2015, é de querer vê-los de novo o mais rápido possível. E não de maneira formulaica e gananciosa, apenas para tirar uns troco, mas, como tem acontecido nessa nova fase do universo Rocky até aqui, com história sobre personagens que não apenas enfrentam uma luta de cada vez, mas que também aprendem com os hematomas do passado e voltam mais evoluídos, mais complexos e familiares. Espero ver outra vez Adonis, Bianca e, embora improvável, por que não um pouco mais de Ivan e Viktor Drago.

Nota: 8/10

    

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

CRÍTICA: A FAVORITA


O amor é estranho. E eu digo esquisito mesmo, torto e desconfortável. Ao menos, é o que parece pensar o grego Yorgos Lanthimos, diretor de obras que, até agora, se dedicaram a navegar entre os espectros mais bizarros do afeto humano - e, de certa forma, dos animais também. Ao dirigir os notáveis Dente Canino, O Lagosta e O Sacrifício do Cervo Sagrado, o cineasta tensionou a extremos caricatos as relações pessoais de seus personagens, tornando-as particularmente mais hipnotizantes justamente pelo modo impessoal e até frio com que constrói suas narrativas. E embora seja, de algumas formas, o seu filme mais comercial até agora, A Favorita ainda assim oferece uma experiência intrigante que não consegue deixar ilesa a atenção do espectador, girando em torno de cenas como aquela que traz uma moça ambiciosa masturbando seu pretendente enquanto monologa sobre seus planos, indiferente e até desdenhando a necessidade masculina de satisfação sexual em comparação com a escalada de poder que está arquitetando.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

CRÍTICA: COMO TREINAR O SEU DRAGÃO 3


Quando estreou em 2010, Como Treinar o Seu Dragão me chamou a atenção por trazer um roteiro corajoso. Apesar de repassar uma relação bastante batida entre homem, fera e a sociedade que a rejeita, a animação tomava decisões arriscadas que, no fim, serviam como pagamento em troca da comoção, que chegava no desfecho de forma natural. Para colocar tudo na ponta do lápis, não é qualquer filme voltado ao público infantil que amputa não um, mas dois de seus protagonistas. Aliás, é difícil encontrar produções para o grande público que tomem decisões definitivas e as assumam, pois normalmente os estúdios temem a rejeição e a falta de opções para se explorar em continuações.

Foi esse espírito que também me levou satisfeito para fora da sala de cinema em 2014, depois de assistir Como Treinar o Seu Dragão 2. Não só porque a sequência voltava a tomar um rumo ousado, mas também porque assumia uma passagem de tempo considerável na idade de Soluço, o herói da história. Veja bem, não digo que os momentos catárticos específicos de cada filme são tudo que há de bom neles. Não estou citando aqui a linda fotografia que o gênio Roger Deakins ajudou a construir no segundo filme, nem mesmo o design de produção criativo e minucioso dos cenários e personagens, tampouco me detenho na trilha empolgante de John Powell ou na concepção diversa dos astros deste universo, que são os dragões. E embora traga de volta a maioria dessas características, Dragão 3 é mais comedido e menos ousado, mais preocupado realmente em ser o derradeiro episódio da saga de Soluço e Banguela.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

CRÍTICA: HOMEM-ARANHA NO ARANHAVERSO


Um porco falante vestido de porcoaranha entrega um martelo de dimensões ridículas para o protagonista e diz: “Ele cabe no seu bolso”. O público ri, pois entende que em um universo concebido totalmente por animação, ele cabe mesmo.


Um dos maiores trunfos das produções animadas sempre foi esse “desapego” que os chamados desenhos têm do compromisso com as leis que regem a nossa não tão colorida realidade. Diferente de um live-action (filme com pessoas de carne e osso), a animação pode ser extremamente caricata ao ponto de beirar o abstrato, sem, com isso, tirar o espectador da imersão cinematográfica. E se filmes como Os Incríveis 1 e 2 já exploraram bastante essas potencialidades no modo como movimentam os planos e fazem cortes e enquadramentos que seriam impossíveis para uma câmera de verdade, Homem-Aranha no Aranhaverso extrapola essa ideia e utiliza quase todos os recursos narrativos, sejam visuais ou sonoros possibilitados pela animação, para tornar cada instante de projeção imersivo e cativante para nós aqui do lado menos divertido da tela.