A arte é normalmente uma via de
duas mãos: o artista e sua obra oferecem algo, mas o observador, mesmo que
inconscientemente, também deve desprender algo de si próprio para que sua
experiência seja completa, pode ser conhecimento, emoção, sensações... De
qualquer forma, ao menos ele tem de oferecer à obra atenção, se espera que ela
lhe atinja de alguma maneira, mesmo que de uma ruim. Vista assim, a arte existe
graças a este tipo de reação química, esta troca de elétrons ente ser humano e
criação. Porém, no que se trata do cinema, o espectador sempre foi mal
acostumado por produções de fácil acesso a apenas sentar-se em sua poltrona e
esperar ser comovido por aquilo que se passa na grande tela a sua frente. Um
equívoco, claro, e alguns chegam a dizer inclusive que há certos filmes que são
apenas para desligar o cérebro e relaxar. Eu costumo chamar longas-metragens assim
de ruins, pois acredito que mesmo o blockbuster mais clichê e previsível possa
oferecer algo que mantenha o cérebro trabalhando por toda a sua duração, e
simplesmente não entendo o conceito de “conseguir desligar o cérebro” para
qualquer coisa que seja. Posto isso, grande parte das produções que vemos
semanalmente buscam de certa maneira induzir a emoção, a moral ou a lógica que
querem passar com uma história ou outra - e não aponto isso como um demérito
(!). Mas, de vez em quando, aparecem aqui e ali um roteiro que exige de seu
observador um pouco mais; que este trabalhe em cima do que a obra oferece, seja
teorizando, julgando, raciocinando, etc. Obras assim costumam gerar grande
repúdio do público em geral que simplesmente prefere tramas que digam elas
mesmas ao que vieram e do que se tratam, poupando assim o trabalho do
espectador. O que não será o caso de 12
Anos de Escravidão, que embora apresente esta característica exigente de
seu espectador, fala sobre um tema tão polêmico e acessível, que deve compensar
a abordagem do diretor Steve McQueen no que tange o cativo exercido pelo filme.
Mantendo-se distante enquanto cineasta,
McQueen abusa de tomadas estáticas ou com pouquíssimos movimentos, buscando não
chamar atenção para si mesmo, e quando finalmente notamos que ele está
realizando um longo plano sem cortes, este já está quase no final. Mas de
maneira alguma isso indica frieza em sua condução, se o diretor mostra-nos
algum ato atroz, é porque a narrativa exige e não simplesmente para chocar. Desta
maneira cria um vácuo emocional que o público terá de preencher sozinho. Afinal, o
realizador jamais julga qualquer um de seus personagens, não tenta glorificar
os que ajudam o protagonista ou condenar aqueles que se põe em seu caminho, e
mesmo o próprio Solomon (Chiwetel Ejiofor) não é retratado como uma vítima
indefesa. Esta é a tarefa do espectador aqui, e em comparação com outros filmes
que exigem este tipo de esforço redobrado, creio que este aqui pode ser ou
muito exaustivo ou muito relaxante, depende, é claro, do caráter de cada um.
Por exemplo, seria muito fácil comprar o personagem de Benedict Cumberbatch
como um bom samaritano que se dispôs a ajudar do melhor jeito que pôde, mas
isso seria ter uma visão e audição seletivas, pois se, sim, estão lá fatos que
apontam sua tendência a uma boa índole, também estão aqueles que revelam seu
comodismo com os absurdos a sua volta, como quando ignora o choro de uma de
suas escravas.
Assim, o longa nos convida
constantemente a fazer nosso próprio julgamento das figuras que desfilam por
sua duração. Muitas delas, aliás, surgem na narrativa para saírem da mesma de
forma tão abrupta quanto entraram, o que, ao invés de incomodar, funciona
excepcionalmente para transmitir a natureza periódica da vida do escravo, que
como uma mercadoria passa de mão em mão tocando pelo caminho diversas histórias
e arcos dramáticos dos quais, assim como nós, ele jamais saberá o fim. Porque
na vida real nem sempre o vilão se dá mal e o herói sai vitorioso, de fato, na
vida real, às vezes não há um vilão definido, e muito menos um herói, e deste
modo, nunca saberemos o que ocorreu ao caseiro interpretado por Paul Dano, com
o comerciante de escravos de Paul Giamatti e nem mesmo que conclusão teve a
história de Patsey (Lupita Nyong’o).
Baseado em uma história real, o
roteiro conta sobre o sequestro de Solomon, um homem que se vê capturado por
traficantes de escravos que o vendem para fazendeiros sulistas. Um deles,
interpretado por Michael Fassbender, é o que mais atraí a atenção por sua
natureza violenta e ao mesmo tempo conflituosa, uma vez que está apaixonado por
Patsey. Edwin, no entanto, não hesita em mandar castigar, com muita naturalidade,
os trabalhadores que não atingem a meta na colheita de algodão, porém, a ameaça
que representa jamais fica tão clara quanto no instante em que, com o olhar
fixo e perdido no escuro, escuta as explicações de Solomon sobre um boato de o
escravo querer enviar uma carta, onde sua imobilidade quase que total promete
um ato de selvageria iminente. Mais do que isso, com seu pouco tempo em tela,
Fassbender ainda protagoniza uma curiosa disputa de poder entre seu personagem
e a cruel e amargurada esposa do mesmo, esta sim, assustadora em tempo
integral. Mas Chiwetel Ejiofor não fica atrás, e seu Solomon é mais do que
apenas uma vítima; ele defende-se quando julga necessário e promissor, e sabe
calar-se quando reconhece que seu oponente não é dado ao diálogo. Submisso e obrigado a esconder sua natureza erudita, mas jamais frágil, seu personagem é forte e cheio de
imposição, o que, para um filme que não toma partidos, é importante para que ao
menos tenhamos a vontade de torcer por ele.
Uma imparcialidade acertada, repetida da abordagem que McQueen já havia assumido em Shame, e que ao
contrário de outras produções que se omitem para não se comprometerem nem com um
lado nem com o outro, é baseada justamente na colocação clara de todos os
pontos sobre os personagens e temas, os bons e os ruins, abstendo-se apenas de
apontar suas próprias preferências em relação aos mesmos, deixando esta tarefa àqueles sentados do lado de cá da tela. E não deixa de ser curioso o fato de um
filme sobre escravidão dar tanta liberdade aos espectadores.
P.S. - A produção conta ainda com uma delicada e melancólica trilha de Hans Zimmer que por mais que mereça o destaque, em vários momentos lembra muito a sua composição para o filme A Origem, na faixa Time.
NOTA: 10/10
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