quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

ELA



Em um futuro (não tão diferente assim do nosso presente) onde cada indivíduo parece ter como melhor amigo o seu computador portátil, pouco comunicando-se um com o outro presencialmente, tornou-se desnecessário paras as pessoas demonstrarem seus gostos, estilos, opiniões ou posições sociais e políticas através da aparência. Estampas, logos, marcas e demais detalhes estilizados e ou personalizados fugiram da vestimenta do cidadão comum, em seu lugar, roupas coloridas, de uma paleta de tons básicos, que quando não se mostram chapadas em toda uma peça do vestuário, no máximo se espalham por alguma textura padronizada, unificando assim aquele conjunto de pessoas que em tempos de redes sociais e alta exposição da vida pessoal online, não precisam mais externar no mundo real suas nuances de personalidade. E deste modo, a roupa acaba servindo até mesmo para poupar o último resquício de comunicação entre eles, já que suas agradáveis cores vivas e suas texturas repetitivas parecem já adiantar pra o próximo “estou bem e tudo está normal, obrigado por perguntar”. E o figurino é apenas um detalhe admirável de Ela, novo longa-metragem de Spike Jonze, projeto que se mostra eficiente como estudo de personagem, romance, ficção-científica e debate filosófico. O que é algo considerável para um filme que fala basicamente sobre um homem apaixonado pela Siri.


Sim, a princípio uma trama absurda, no mínimo inusitada. Roteirizada pelo próprio Jonze, a história de Ela demonstra que o cineasta está decidido a seguir os passos do roteirista Charlie Kaufman, que escreveu os dois primeiros roteiros dirigidos pelo realizador, e cujo trabalho é repleto de obras instigantes, criativas e, claro, inusitadas também. Aqui conhecemos Theodore (Joaquin Phoenix), que está em processo de divórcio com Catherine (Rooney Mara), deprimido, ele não hesita em pedir ao seu tocador: “reproduzir música melancólica”; quando então decide atualizar o seu sistema operacional para uma nova versão personalizada, uma inteligência artificial com traços muito humanos e que se desenvolve a partir da interação com seu usuário, a sua acaba por chamar-se Samantha (voz de Scarlett Johansson), e não demora muito até que se apaixonem e comecem a enfrentar os previsíveis empecilhos de seu estranho relacionamento.

Fica claro então de onde pode-se desenvolver um estudo de personagem, um romance e até mesmo um debate filosófico desta premissa. Porém, menos óbvio e mais interessante é o que faz deste plot uma curiosa ficção-científica também; afinal, ao apresentar um conceito novo baseado na ciência, estabelecer suas regras e explorá-lo com o devido cuidado, Ela demonstra possuir todos os pré-requisitos para encaixarmos sua trama dentro do gênero. Com os dois primeiros itens definidos, o roteiro de Jonze trata então de explorá-los, não se deixando cair apenas nos conflitos óbvios do romance, e logo acompanhamos a primeira transa do casal, que o cineasta apropriadamente mostra apenas através do som, com a tela totalmente negra, deixando-nos imaginar o ato, e deste modo, nos colocando no lugar de seus personagens que também só poderiam vivenciar a experiência através da imaginação, tendo no som o elo de ligação entre eles. Em outro instante ficamos sabendo através da personagem de Amy Adams que estas paixões entre usuários e OS’s estavam acontecendo por todo o mundo, e como todo tipo “novo” de relacionamento, isto vinha causando a revolta de uns e a aprovação de outros, o que já de quebra levanta um interessante e atualíssimo debate sobre a união de pessoas do mesmo sexo, já que, assim como homossexuais e afins, os sistemas operacionais não escolheram sua condição, eles “nasceram” assim. Mas a nuance do impacto deste novo costume que mais chama a atenção durante o filme, é mesmo o conceito de um avatar humano para os OS’s; pessoas que se dispõe a interpretar as personalidades como a de Samantha para os usuários humanos apaixonados terem o que tocar e interagir fisicamente. Não só um acréscimo criativo a este mundo, como também a porta para outro paralelo com a nossa realidade, afinal, nos dias de hoje, as pessoas postam o que vivem no Facebook, ou vivem para poderem postar no Facebook? Quem são os reais avatares? Nossos perfis nas redes que nos representam online, ou nós que representamos em carne e osso estes perfis?

Possíveis Spoilers abaixo

Voltando a encarnar um personagem introspectivo, Phoenix dispensa comentários sobre sua versatilidade dramática ao trazer uma figura muito distante daquela perturbada e sombria de O Mestre, e se já discutia sua complexa e estudada composição naquele filme no ano passado, aqui é um prazer notar como o ator consegue criar um personagem tão tridimensional e profundo quanto, apostando justamente numa postura oposta, comedida e de expressões sutis; o ar melancólico raramente abandona o personagem, e quando o faz, por exemplo, durante uma visita ao parque onde, de olhos fechados, é conduzido por Samantha, pode-se perceber a energia da alegria quase incabível do homem passar por seus movimentos. Enquanto isso, Johansson apenas com sua voz constrói a OS como um personagem totalmente crível, e não é difícil se conectar a ela, com o perdão do trocadilho; Da faceira e extrovertida personalidade que vemos exalar no início do longa, ela passa a apaixonada e determinada durante seu desenrolar, perdendo um pouco o humor juvenil e dando lugar em sua entonação ao tom sábio e maduro, que não demora a se transformar num maternal e acolhedor, presente em todo seu último diálogo com Theodore, assinalando o trabalho vocal admirável da atriz ao transmitir a evolução de Samantha. Um desenvolvimento que inevitavelmente leva a um desfecho humanamente desolador, que nos remete a questionamentos existências básicos como: “estamos sozinhos?”, principalmente no que se refere ao último e emblemático plano do filme, que trás os personagens de Phoenix e Adams no terraço de um prédio observando o céu, muito provavelmente imaginando se era acima deles, como deuses, para onde teriam ido todos os OS’s, e se como os tais, um dia, ao alcançar um nível de sabedoria e entendimento suficientes, também ascenderíamos para fora da matéria física e seríamos puramente conhecimento e consciência.



Que obra profunda e instigante é esta a de Spike Jonze para gerar tais questionamentos, e mal citei que Theodore trabalha escrevendo cartas manuscritas, uma doce ironia num tempo de comunicações digitais; assim como vou só mencionar de passagem que suas camisas são quase todas baseadas num tom vermelho rosado, indicando sua dependência de um relacionamento amoroso. É normal assim que, mesmo aqueles que não percebam todos estes detalhes que fazem de Ela um longa tão elogiável, saíamos todos da sala de cinema com um sentimento aterrador de desolação, tanto sentimental quanto existencial, provando que podemos nos emocionar e chorar com finais trágicos e pedantes, mas no final, é o simples drama interno e pessoal o que mais forte nos atinge. Spike Jonze entende isso e seu filme é, além de bem sucedido em todos os gêneros pelos quais se aventura, um filme do gênero “humano”.


NOTA: 10/10





Nenhum comentário:

Postar um comentário