domingo, 29 de dezembro de 2013

VIVI E MATEI


"Querido Morfeu,

     Não é estranho que nos dias de hoje, nos comuniquemos ainda através de cartas? Minha irmã se ri toda sempre que me vê saindo para o correio carregando comigo o envelope a você endereçado. Enfim, me perdoe a falta de carinho das próximas linhas, mas tive um sonho intenso na outra noite, talvez um pesadelo, ainda me falta tomar essa decisão. Eu estava em um jardim de pedra murado, havia saídas por todos os lados, estas em forma de arcos góticos, e que davam para outros jardins de pedra, como um grande labirinto. Ninguém me disse, mas eu sabia, intrinsecamente eu sabia, que o mundo onde eu estava era todo coberto por este labirinto. Não conseguia ver o sol, embora eu soubesse que se punha a minha frente em algum ponto, e havia uma neblina leve no ar, que somada a penumbra do poente, aquela que anuvia os olhos quando o dia ainda não decidiu se fica ou dá lugar à noite, tornava tudo muito difuso. Mas não era este cenário obviamente onírico que me perturbou tanto em relação a este sonho (talvez pesadelo), nem nada exatamente durante ele, foi mais o depois, e o depois ,depois se explica.


     Acontece que nele havia um garoto, vestia uma flanela quadriculada, vermelha e calças jeans - veja você, que em meus sonhos, as modernidades estão presentes! Era muito bonito, magro, esguio, rosto triangular, liso, os cabelos loiros mal cortados caiam pelo fronte sobre os olhos, estes azuis, claro, como não poderiam deixar de ser. Ao mesmo tempo, e reconheço e peço perdão pelo péssimo trocadilho a seguir, ele não era nenhum homem dos sonhos. Belo? Sim. Perfeito? Não é o que muitos diriam. Talvez tenha sido esta sua beleza normal e aceitável que me tenha chamado a atenção em primeiro lugar. Ele era introspectivo, mas tinha um sorriso no canto da boca, como que engatilhado, esperando a frase certa para se disparar por todo o rosto. Não lembro bem como nem o porquê, mas conversávamos, tão profundamente perdidos em um assunto importantíssimo e do qual parecíamos entender tudo, um tópico do qual, naturalmente, jamais me lembrarei, pois ao mundo dos sonhos ele pertence. Nos entendíamos bem, e no que me pareceram dias de pura verborragia, ganhamos a intimidade de uma vida, embora ainda estivéssemos sentados na beira da mesma fonte, já há muito seca, com as mesmas roupas, e os mesmos rostos joviais. Eu já sabia disparar-lhe o sorriso, ele entendia quando preferia o silêncio do olhar, e sabíamos mutuamente do vínculo formado entre nós. Muito embora, o sol poente parecesse estar ainda no mesmo ponto onde estava no começo de tudo aquilo.

Tudo muito poético. Mas deve estar perguntando-se que mal há num sonho desses?

     Pois no sonho em si, nada, pelo contrário, desfrutei da presença daquele amigo, amante e confidente, vivi-o intensamente cada segundo. Porém, acordei. 

     E qual não foi a minha tristeza em constatar que, ao fazê-lo, havia matado aquele ser, esse ao qual me afeiçoara tanto. Em desespero tentei voltar ao sono, ainda no processo de despertar, como o da penumbra do poente, nem dia, nem noite. Queria vê-lo de novo, garantir que mesmo em minha mente, ainda existia. Não o encontrei então. De fato, jamais voltei a vê-lo. Passei dias em profunda amargura, imaginando se de fato ele existia. Não me leve a mal, sabe que tem meu coração pela duração de uma vida, mas não conseguia conceber que meu intelecto tivesse criado do nada tal criatura, com tantas características e traços admiráveis. Se quiser, você pode até considerar traição, e eu entenderia seu ciúme, mesmo que nunca tenha havido uma outra parte envolvida, já que me senti entregue a ele, e ele a mim, durante toda uma noite (ora, e não é essa a duração da maioria das traições?), mas eu o aconselharia a ficar calmo, tenho certeza que o matei, senti-o morrendo quando abri os olhos, tal qual o fizéssemos em perfeita e diametralmente oposta sincronia.

    É frustrante inclusive, que em tempos modernos como os nossos, onde você conhece alguém interessante  e corre logo a fixar contatos por computadores, celulares e afins, eu nunca mais possa falar com uma das melhores pessoas que já conheci. O que eu digitaria na caixa de busca? Ele não tinha um nome, não precisava de um. Como o lago cristalino distante para um andarilho perdido no deserto, sedento, o garoto do sonho não passou de uma miragem, uma trucagem do cérebro. Vivi uma vida ao lado dele, meu coração parece velho, gasto, fraco, como que cansado de bater. Pode um sonho afetar tanto? Podemos de fato vivê-los tão profundamente? Eu sei apenas o que sinto.

     Não vou escrever-lhe em breve, portanto não tenha pressa para responder, desculpe minha frieza, mas preciso de um tempo de luto, há um cadáver apodrecendo no meu consciente que precisa ser enterrado. Ou em sonhos e devaneios ei de viver por muito mais tempo. E reconheço e peço perdão novamente, pela ironia de que o assassinato de um sonho cometido pelo despertar, possa me condenar a uma vida perdida nos mesmos, até que estes, enfim, me levem a vida igualmente, como em uma espécie de vingança tão amargurada quanto a saudade que sinto atualmente.

PS- me desculpe o tom poético, não consegui evitá-lo.

PPS- Definitivamente foi um sonho, o pesadelo foi ter mesmo que acordar"







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