sábado, 23 de novembro de 2013

BLUE JASMINE



     Quando chegou ao fim, em 1980, o seriado mexicano El Chavo del Ocho (para nós brasileiros, apenas Chaves) enfrentava problemas judiciais que se estenderiam até os dias de hoje, que envolvem o domínio dos direitos autorais sobre os icônicos personagens. Por um lado temos alguns dos atores que se consideram os criadores daquelas figuras como as conhecemos, com seus tiques, vozes e trejeitos, enquanto de outro os autores da série dizem terem sido eles a escreverem os personagens daquela maneira, deixando a linha que separa o que é de responsabilidade do escritor, e aquilo que é acrescentado pelo ator, muito anuviada e difícil de estabelecer em muitos casos. Agora você pode estar se perguntando por que diabos eu estou citando Chaves em uma crítica sobre o mais novo filme de Woody Allen. Não que esteja diminuindo o primeiro que (mesmo sem querer querendo) teve grande influência no início da minha educação audiovisual, mas acontece que o exemplo do que aconteceu entre o elenco e os roteiristas daquele programa televisivo em relação às figuras vistas em tela, me remeteu diretamente à Jasmine, protagonista escrita por Allen e interpretada por Blanchett aqui, onde também é muito difícil definir o que veio do roteirista e diretor, e o que veio da atriz. Normalmente, quando se fala de um filme do responsável por Annie Hall, Hannah e Suas Irmãs, Manhattan, Interiores e mais recentemente, Match Point, tende-se a ter como figura principal de estudo, o próprio Woody Allen, porém, a Jasmine de Cate Blanchett se mostra uma rara exceção na carreira do cineasta, se sobrevalendo ao seu autor em uma performance que embora dedicada a esboçar uma pessoa moralmente alquebrada e fútil, revela uma incrivelmente tridimensional e repleta de pequenas, sutis e curiosas nuances.


     Mas do começo: Após perder todas as suas posses, uma mulher acostumada ao luxo e a riqueza é obrigada a mudar-se para a casa da irmã, em um bairro de periferia de uma cidade quente e pouco glamourosa, onde vai entrar em choque principalmente com a nova realidade experimentada, recusando-se a ver a felicidade retirada da rotina simples daquelas pessoas. Lá, ela também vai criticar e empreender debates com o namorado de sua irmã, um homem beberrão, com tendências explosivas, porém, perdidamente apaixonado. Não, este não é um remake do clássico irretocável Uma Rua Chamada Pecado, estrelado pelos imortais Marlon Brando e Vivien Leigh, embora a sinopse favoreça esta ideia, mas com certeza o longa em questão se inspira e homenageia aquele dirigido por Elia Kazan, enquanto toma seus próprios rumos.

     É relativamente fácil notar o empenho de Cate Blanchett, em um de seus melhores momentos em anos, para compor nossa protagonista: a atriz não demonstra dificuldades em rechear de certo desprezo e pompa suas falas, sempre conduzindo-as com uma etiqueta implícita. Porém, é em outros aspectos mais ou menos óbvios que a atriz garante uma performance brilhante. A sua Jasmine não se envergonha, por exemplo, de entregar-se ao choro, coisa que faz com frequência, demonstrando sua instabilidade emocional, o que ao invés de nos causar antipatia (e Jasmine é uma personagem antipática, nem atriz nem diretor jamais tentam nos esconder ou poupar este fato), invoca a compaixão, e em última análise, pena. Mas pena não por sabermos que de milionária ela passou a pobre de um instante para o outro, mas porque somos apresentados através de flashbacks ao mundo em que ela vivera antes desta queda, e compreendemos que não é diretamente sua culpa ter tido sua personalidade esculpida nos moldes de uma sociedade ostensiva e moralmente condenável, e no final das contas, a dó que sentimos por Jasmine é comparável a que sentiríamos se víssemos um cão sem dono perdido na beira da estrada, sem saber como atravessá-la: ele não tem consciência do mundo em que está e dos perigos que o cercam, tentando, inutilmente, chegar ao outro lado.


     Assim, é precioso notar que a atriz complementa cada momento ocioso de sua presença em cena com trejeitos e ações mais sutis, que denotam uma vida inteira vivida em uma realidade diferente daquela. Em certa cena, por exemplo, enquanto todos saem de um carro e começam a pegar coisas no porta-malas, note como a personagem se demora mais um pouco dentro do veículo, claramente esperando que alguém viesse abrir sua porta, saindo de lá tão logo percebe que isso jamais aconteceria. Em outro instante ela cruza as pernas e arruma a postura para atender a um telefonema importante, mesmo ciente de que ninguém a está observando. Detalhes que acabam dragando o espectador para a trajetória daquela figura, por mais que suas ações e personalidade tendam a nos afastar dela, chegando a ser irônico o quão próximos e comovidos estamos por ela no tocante e destruidor desfecho do longa, que de certa forma, ilustra a total entrega da triste Jasmine do título, a um mundo agora apenas idealizado, e consequentemente sua total repulsa a este simplório e suburbano habitado por figuras como sua irmã Ginger (Sally Hawkins, carismática e dócil na medida certa para não se sobrepor a comoção gerada por sua colega) e seu namorado Chili (Bobby Cannavale).


     Contando também com participações, ainda que apagadas, dos sempre ótimos Louis C.K., Michael Stuhlbarg e Alec Baldwin, Blue Jasmine acaba deixando de lado mesmo é o próprio Woody Allen, que embora seja, como de praxe, o roteirista e diretor aqui, humildemente sacrifica suas tendências e deixa que suas criações se sobressaiam e ganhem vida própria, também não se saindo despercebido. É claro que sua mão está ali bem visível em uma trama que apesar de causar o riso eventualmente, o faz de maneira racional sem nunca abandonar a narrativa melancólica e pessoal tão característica de seus dramas. Meu único pesar foi não poder continuar ouvindo Jasmine falar, o que apesar de tortuosamente triste, se mostra durante a duração do longa, sempre eficientemente cativante.


NOTA: 10/10



     

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