Quando chegou ao fim,
em 1980, o seriado mexicano El
Chavo del Ocho (para nós
brasileiros, apenas Chaves) enfrentava problemas judiciais que se
estenderiam até os dias de hoje, que envolvem o domínio dos direitos autorais
sobre os icônicos personagens. Por um lado temos alguns dos atores que se
consideram os criadores daquelas figuras como as conhecemos, com seus tiques,
vozes e trejeitos, enquanto de outro os autores da série dizem terem sido eles
a escreverem os personagens daquela maneira, deixando a linha que separa o que
é de responsabilidade do escritor, e aquilo que é acrescentado pelo ator, muito
anuviada e difícil de estabelecer em muitos casos. Agora você pode estar se
perguntando por que diabos eu estou citando Chaves em uma crítica sobre o mais novo filme
de Woody Allen. Não que esteja diminuindo o primeiro que (mesmo sem querer
querendo) teve grande influência no início da minha educação audiovisual, mas
acontece que o exemplo do que aconteceu entre o elenco e os roteiristas daquele
programa televisivo em relação às figuras vistas em tela, me remeteu
diretamente à Jasmine, protagonista escrita por Allen e interpretada por
Blanchett aqui, onde também é muito difícil definir o que veio do roteirista e
diretor, e o que veio da atriz. Normalmente, quando se fala de um filme do
responsável por Annie Hall, Hannah e Suas Irmãs, Manhattan, Interiores e mais recentemente, Match Point, tende-se a ter
como figura principal de estudo, o próprio Woody Allen, porém, a Jasmine de
Cate Blanchett se mostra uma rara exceção na carreira do cineasta, se sobrevalendo
ao seu autor em uma performance que embora dedicada a esboçar uma pessoa
moralmente alquebrada e fútil, revela uma incrivelmente tridimensional e
repleta de pequenas, sutis e curiosas nuances.
Mas do começo: Após
perder todas as suas posses, uma mulher acostumada ao luxo e a riqueza é
obrigada a mudar-se para a casa da irmã, em um bairro de periferia de uma
cidade quente e pouco glamourosa, onde vai entrar em choque principalmente com
a nova realidade experimentada, recusando-se a ver a felicidade retirada da
rotina simples daquelas pessoas. Lá, ela também vai criticar e empreender
debates com o namorado de sua irmã, um homem beberrão, com tendências
explosivas, porém, perdidamente apaixonado. Não, este não é um remake do
clássico irretocável Uma Rua Chamada Pecado, estrelado pelos
imortais Marlon Brando e Vivien Leigh, embora a sinopse favoreça esta ideia,
mas com certeza o longa em questão se inspira e homenageia aquele dirigido por
Elia Kazan, enquanto toma seus próprios rumos.
É relativamente fácil
notar o empenho de Cate Blanchett, em um de seus melhores momentos em anos,
para compor nossa protagonista: a atriz não demonstra dificuldades em rechear
de certo desprezo e pompa suas falas, sempre conduzindo-as com uma etiqueta
implícita. Porém, é em outros aspectos mais ou menos óbvios que a atriz garante
uma performance brilhante. A sua Jasmine não se envergonha, por exemplo, de
entregar-se ao choro, coisa que faz com frequência, demonstrando sua
instabilidade emocional, o que ao invés de nos causar antipatia (e Jasmine é uma personagem antipática, nem atriz nem diretor jamais tentam nos esconder ou poupar este fato), invoca a compaixão, e em última análise, pena. Mas
pena não por sabermos que de milionária ela passou a pobre de um instante para
o outro, mas porque somos apresentados através de flashbacks ao mundo em que
ela vivera antes desta queda, e compreendemos que não é diretamente sua culpa
ter tido sua personalidade esculpida nos moldes de uma sociedade ostensiva e
moralmente condenável, e no final das contas, a dó que sentimos por Jasmine é comparável a que sentiríamos se víssemos um cão sem dono perdido na beira da estrada, sem
saber como atravessá-la: ele não tem consciência do mundo em que está e dos
perigos que o cercam, tentando, inutilmente, chegar ao outro lado.
Assim, é precioso
notar que a atriz complementa cada momento ocioso de sua presença em cena com
trejeitos e ações mais sutis, que denotam uma vida inteira vivida em uma
realidade diferente daquela. Em certa cena, por exemplo, enquanto todos saem de
um carro e começam a pegar coisas no porta-malas, note como a personagem se
demora mais um pouco dentro do veículo, claramente esperando que alguém viesse
abrir sua porta, saindo de lá tão logo percebe que isso jamais aconteceria. Em
outro instante ela cruza as pernas e arruma a postura para atender a um
telefonema importante, mesmo ciente de que ninguém a está observando. Detalhes
que acabam dragando o espectador para a trajetória daquela figura, por mais que
suas ações e personalidade tendam a nos afastar dela, chegando a ser irônico o
quão próximos e comovidos estamos por ela no tocante e destruidor desfecho do
longa, que de certa forma, ilustra a total entrega da triste Jasmine do título,
a um mundo agora apenas idealizado, e consequentemente sua total repulsa a este
simplório e suburbano habitado por figuras como sua irmã Ginger (Sally Hawkins,
carismática e dócil na medida certa para não se sobrepor a comoção gerada por
sua colega) e seu namorado Chili (Bobby Cannavale).
Contando também com
participações, ainda que apagadas, dos sempre ótimos Louis C.K., Michael
Stuhlbarg e Alec Baldwin, Blue
Jasmine acaba deixando de
lado mesmo é o próprio Woody Allen, que embora seja, como de praxe, o
roteirista e diretor aqui, humildemente sacrifica suas tendências e deixa que
suas criações se sobressaiam e ganhem vida própria, também não se saindo
despercebido. É claro que sua mão está ali bem visível em uma trama que apesar
de causar o riso eventualmente, o faz de maneira racional sem nunca abandonar a
narrativa melancólica e pessoal tão característica de seus dramas. Meu único
pesar foi não poder continuar ouvindo Jasmine falar, o que apesar de
tortuosamente triste, se mostra durante a duração do longa, sempre
eficientemente cativante.
NOTA: 10/10
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