Ao sair do cinema após a sessão de Jogos Vorazes no ano passado, eu estava curioso
quanto ao futuro da franquia, mas não o suficiente para me dar ao trabalho de
ler os livros de Suzanne Collins. Ao sair de Jogos Vorazes: Em
Chamas, eu estava ansioso pelo futuro da franquia e querendo ler os livros
imediatamente. Esta é a grande qualidade desta continuação, que diferentemente
do apenas bom longa anterior, se mostra segura e capaz de transmitir todas as
emoções, ideias e sentimentos que pretende. Sem parecer se esforçar para isso,
de fato com muita naturalidade, Em Chamas invoca a revolta, se mostra sensível, comove, faz vibrar e também gruda
o espectador na cadeira quando quer criar tensão, navegando entre estas
diferentes sensações sem nunca abandonar seu cunho político, sabendo lidar
admiravelmente bem com o contraste entre suas carismáticas figuras centrais e a
atmosfera fria e impessoal que estas habitam.
Diferenciando-se desde o início por uma abordagem estética que
deixa de lado o uso da câmera de mão chacoalhante que tanto incomodava no longa
original, o diretor Francis Lawrence dá preferência ao roteiro e a seus
personagens do que a trucagens técnicas que chamem atenção para si mesmas.
Na verdade, o único momento em que vemos o diretor ousar um pouco mais é quando
acompanha em uma espécie de mini-plano sequência, a subida de Katniss (Jennifer
Lawrence) por um elevador em direção à arena. Assim, é sem chamarizes técnicos
que começamos a acompanhar nossa heroína quase um ano após seu retorno
vitorioso dos tais jogos do título, quando então o tirânico presidente Snow
(Donald Sutherland) obriga que a moça e Peeta (Josh Hutcherson) banquem o
casal feliz para as câmeras a fim de extinguir sementes revolucionárias que
começam a nascer nos distritos.
Propondo um xadrez político desde seus primeiros instantes, o
roteiro de Simon Beaufoy e Michael Arndt (este último responsável pelo
brilhante Toy Story 3) não se demora a enfocar Katniss tendo de
agir com sangue-frio, colocando em segundo plano qualquer sentimento que
sustente por Gale (Liam Hemsworth) e sacrificando seus ideais em prol da
segurança de sua família e amigos. O que torna, aliás, o triângulo amoroso
protagonizado pela garota, Gale e Peeta, muito crível e justificável, ao
contrário do que acontecia, por exemplo, em outra franquia adaptada de uma
série de livros escrita por uma outra autora (não é Crepúsculo?).
Falando nisso, se Jogos Vorazes consegue fazer melhor que a
suposta "saga" dos vampiros em construir um dilema amoroso viável,
também consegue ser incrivelmente mais eficiente em seu desfecho, que apostando
em um plano idêntico aquele final de Amanhecer - Parte 1, funciona
muito melhor em despertar a curiosidade do púbico para uma continuação graças
ao bom filme que o precede.
Esse, aliás, encontra sua força ao se equilibrar sobre dois
pontos distintos: o primeiro é referente a seus personagens, que conforme eu já
havia apontado no meu texto sobre o longa anterior, são interessantes e possuem
intérpretes carismáticos; Lawrence continua conferindo a Katniss a mistura
curiosa de uma personalidade simultaneamente bronca e delicada, conseguindo
transmitir com suas expressões quase sempre fechadas o pragmatismo por trás das
ações da garota, mas nunca deixando de lado sua sensibilidade diante das lembranças da experiência traumática vivida por ela. E se em um raro momento de descontração o filme é eficiente em fazer rir, é
graças à expressão da atriz somada à empatia prévia que construímos com sua
personagem (esperem pela cena do elevador). Enquanto isso, Josh Hutcherson traz
para Peeta uma melancolia onipresente que se contrapõe à doçura e o
companheirismo de seu personagem, características que fazem do garoto, de
longe, a figura mais complexa e interessante da franquia até então, seguido de
perto pelo Haymitch de Woody Harrelson, cujos hábitos alcoólatras se tornam
mais compreensíveis aqui. Fugindo do que a princípio me pareceram possíveis
estereótipos, Em Chamas ainda nos apresenta a pelo menos mais
uma patota de personagens trágicos cujo carisma nos fisga com eficiência, seja
o dúbio Finnick (Sam Claflin), a ousada Johanna (Jena Malone), Beetee (Jeffrey
Wright) ou a doce Mags (Lynn Cohen).
Mas o segundo ponto do qual falava há pouco é a atmosfera
fria e cruel que o diretor, seus roteiristas e toda a equipe de criação
conseguem criar em conjunto para que estes personagens tão cativantes habitem.
Se por um lado as instalações de treinamento dos tributos e comando dos jogos
se baseiam em uma estética estéril, clara e funcional, retirando qualquer
personalidade e acolhimento que o local poderia oferecer, as roupagens dos
cidadãos de Panem voltam a se destacar pelo bizarro e inusitado, o que desta
vez ajuda mais do que atrapalha, servindo com maior eficiência ao objetivo de
causar estranheza. Com destaque para um dos vestidos de Effie (Elizabeth Banks,
comovente) que parece ser feito de borboletas, e para aquele trajado por
Katniss que revela magicamente um par de asas negras que referenciam (pelo
menos visualmente) Cisne Negro. E é justamente do choque entre este
mundo cruel e suas figuras carismáticas - ou impossíveis - que este novo Jogos
Vorazes extraí seus principais debates políticos, que viajam entre o
cinismo de massa proposto pelo programa sensacionalista apresentado por Caesar
(Stanley Tucci), os esquemas de manipulação fascista planejados e executados por
Snow e Plutarch (um insuspeito Philip Seymour Hoffman), até as estratégias
desesperadas de apelo público por parte dos tributos.
Na verdade, só de propor este tipo de discussão tão atual, que
pode encontrar exemplos na grande mídia de qualquer país - do nosso inclusive, Em
Chamas já mereceria palmas pela ousadia de inserir um contexto social
tão incomodativo em um blockbuster voltado para o público jovem, mas o longa ainda conta com excelentes cenas de ação, uma estrutura impecável que
vence suas quase duas horas e meia de duração sem se fazer notar, e com um
elenco primoroso que deixa saudades quando saí de cena. De fato, aqui se repete muito da construção dramática do primeiro longa, só que com algumas melhoras, então deixe-me fazer o mesmo com a minha crítica. Tendo em vista que terminei meu texto anterior com a seguinte frase: "Jogos Vorazes consegue deixar eficientemente
uma vontade de saber a continuidade dos eventos que devem se seguir em uma
inevitável sequência", deixe-me terminar esta análise assim: Jogos
Vorazes: Em Chamas consegue
deixar com facilidade uma enorme curiosidade sobre os eventos que devem se
seguir em uma necessária sequência.
NOTA: 9/10
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