segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

CRÍTICA: 1917


O que é “realista” em um filme se tudo nele é encenado, recriado e artificial? Se partirmos do princípio de que mesmo os documentários são baseados na intenção de se criar uma narrativa, então até o mais esforçado filme de guerra, ainda que venha embalado com todos os seus efeitos visuais e sonoros, com as réplicas de figurinos e a maquiagem convincente, ainda assim se trata do recorte e da visão particular de um ou mais artistas.

O que o Cinema pode fazer, no entanto, como forma de Arte, é buscar os sentimentos e sensações para simular uma experiência de forma “realista” através da sua linguagem. Por exemplo, talvez o estouro de uma bomba não seja tão barulhento na vida real, mas se o editor de som decide sacrificar esse “realismo” e colocar o estouro com um volume ensurdecedor, a sensação de surpresa e medo passada para o espectador vai estar bem mais próxima do pavor experimentado por um soldado que tenha ouvido uma explosão de verdade. E esta é a lógica seguida por 1917. Aliás, essa é a única lógica seguida pelo filme dirigido por Sam Mendes, que se por um lado é hábil quando decide fazer o público experimentar a sensação de estar numa guerra, por outro, falha por não convencê-lo de que estar lá é uma coisa ruim.

A começar pela ideia de apresentar o filme como se fosse dois grandes planos-sequência, ou seja, sem cortes aparentes, Mendes e o magistral diretor de fotografia Roger Deakins (um - dos - meus - favoritos, cada palavra é um link que leva para críticas de filmes onde ressaltei seu trabalho estupendo) já convidam o espectador a acompanhar não uma história, mas um mérito técnico. Pois, ao contrário de filmes como Birdman ou Gravidade, por exemplo, em que os planos-sequência tinham coesão narrativa, faziam sentido e eram parte da própria temática e da proposta de cada uma dessas produções, a proeza realizada por Deakins ao conceber uma filmagem que quase sempre parece acompanhar em tempo real a missão dos soldados Schofield (George MacKay) e Blake (Dean-Charles Chapman), nunca chega a se justificar para além do virtuosismo técnico e se mantém como a real protagonista do início ao fim do projeto.

Até porque o roteiro escrito pelo próprio Sam Mendes ao lado da roteirista Krysty Wilson-Cairns e baseado em memórias do avô do cineasta, não oferece grandes desenvolvimentos ou mesmo uma trama intrincada. Pelo contrário, ambientada durante a Primeira Guerra Mundial, em uma trincheira na França, a história nos apresenta a esses dois soldados britânicos quando eles recebem ordens para atravessar território inimigo e impedir que um batalhão inglês caia numa armadilha arquitetada pelo exército alemão, evitando assim o massacre de mil e seiscentos homens.

Aprofundados apenas ao nível de estabelecer que Schofield sobreviveu a uma batalha sangrenta e que Blake possui um irmão lutando no fronte de batalha que está em perigo, a dupla de protagonistas jamais deixa de soar como uma desculpa para Mendes criar seu espetáculo técnico. Não há nada de particular sobre um ou outro que os humanize e, por consequência, humanize os horrores que ambos testemunham. Nem mesmo os medos e anseios dos personagens soam como um diferencial, pois é possível imaginar que todos os outros soldados que morrem ou passam por eles ao longo dessa jornada dividem angústias similares.

E mesmo quando parece que o roteiro de Mendes e Wilson-Cairns tenta fazer algum esforço para trazer outras dimensões para a dupla, o tiro sai pela culatra, uma vez que se percebe que os diálogos e as ações dos personagens foram criados e posicionados não para torná-los mais complexos e verossímeis, mas unicamente para gerar momentos de comoção - como aquele em que Blake revela seus conhecimentos sobre árvores-cerejeiras só para que, mais tarde, as flores de cerejeira sirvam de inspiração para o término da missão. E o mesmo vale para coincidências artificiais como a que envolve um cantil cheio de leite ou outra que aborda a queda improvável de um avião.

Sem contar que o modo heroico como Mendes retrata seus mocinhos, além de unidimensional, soa um tanto desonesto para um filme que pretende representar um evento real tão significativo. Em contrapartida, a visão dada pelo diretor aos soldados alemães é de que eram verdadeiros monstros, recorrentemente vistos em contra-luz para esconder seus rostos e transformá-los em sombras desumanizadas, cometendo assassinatos e atos vis mesmo quando auxiliados pelos tais heróis. Enquanto isso, os ingleses são pintados como soldados bravos e sensatos que resgatam amigos de desmoronamentos e provam seu valor rastejando no meio de uma poça com dezenas de cadáveres apodrecidos para alcançar seus objetivos. O que resulta, claro, em uma simplificação um tanto boba de todo contexto político, econômico e social que desencadeou a Primeira Guerra Mundial - bem diferente do da Segunda, pois aqui nem os alemães eram de todo vilões (assistir Sem Novidade no Front) e nem a Inglaterra era de toda uma santa.

Não fosse o bastante, a narrativa concebida por Mendes consegue soar incrivelmente episódica mesmo se tratando de um plano sem cortes, com os protagonistas passando de perrengue em perrengue como se fossem desafios individuais (o bunker, a casa, o atoleiro, a ponte, a cidade, o rio, etc.), sendo quase impossível não comparar a experiência de assistir 1917 com as de jogar um game no estilo de Call of Duty ou Medal of Honor - aliás, nesse aspecto, a ideia de ser filmado em plano-sequência acaba servindo involuntariamente para ressaltar ainda mais essa sensação. E em nada ajuda que os perigos enfrentados por Schofield e Blake sejam pontuados pela aparição de personagens vividos por atores conhecidos do grande público - e eu entendo que a ideia era se apropriar das personas de Colin Firth, Andrew Scott, Mark Strong e Benedict Cumberbatch para trazer autoridade às curtas participações dos oficiais interpretados por eles, mas a impressão geral é de que eles estão ali apenas para levar o jogador de uma fase para a outra… Digo, o espectador de uma cena para a outra.

O que sobra, portanto, é o espetáculo técnico - e note que estou relutando em chamar os méritos do filme de “artísticos” porque Arte, para além de técnica, envolve também expressão. Mas com tão pouco aprofundamento e tantas simplificações, 1917 acaba como uma obra sem densidade alguma, como olhar para um quadro pintado com todas as cores certas, executado com perfeição em cada pincelada, mas que não diz coisa alguma, uma experiência vazia de emoções e oca de temas.

E veja bem, não estou dizendo que o longa-metragem de Sam Mendes não é, ao menos, divertido de assistir, pois ele é, mas trata-se de um entretenimento imediato e efêmero que é fruto dos recursos narrativos utilizados pela produção - sua fotografia, seus efeitos e a qualidade de reprodução dos ambientes e vestimentas da época. Ou seja, da mesma forma que um filme de terror, mesmo ruim, acaba assustando quando emprega um jump scare (um barulho alto e repentino para assustar o público), 1917 também consegue causar certas reações quando se utiliza de recursos que as causariam de qualquer forma - como, por exemplo, o próprio plano-sequência, que por sua natureza ininterrupta, já imputa tensão ao obrigar o espectador a acompanhar quase todos os passos de Schofield e Blake, sugerindo que devemos nos manter atentos a todo instante aos perigos que podem surgir - uma ideia ressalta pelos enquadramentos recorrentemente fechados e a baixa profundidade de campo empregados por Deakins, que nos prendem ao ponto de vista dos dois soldados em boa parte do tempo.

Além disso, o plano sem cortes dá oportunidade para que Mendes explore indiscriminadamente os campos de batalha e demais cenários típicos de uma guerra com a desculpa de estar seguindo os protagonistas. Desse modo, a câmera (que, repito, é comandada brilhantemente por Roger Deakins) consegue se deter em elementos chocantes e repulsivos dessa realidade, como os cadáveres tanto de homens quanto de animais abandonados e apodrecendo na Terra de Ninguém, antes seres-vivos e pessoas com personalidades e vidas próprias, agora meros obstáculos e referências no mapa. Da mesma forma, o diretor de fotografia consegue desnudar a realidade agoniante das trincheiras na Primeira Guerra Mundial ao adentrar junto com os pelotões seus espaços apertados e alojamentos claustrofóbicos.

Aliás, se os dois planos-sequência elaborados por Deakins merecem aplausos por sua realização impecável, sendo impossível visualizar os cortes que certamente existem ali no meio (ainda que se possa imaginar onde eles estão), o design de produção de Dennis Gassner não é menos impressionante na escala e no detalhismo que confere aos cenários devastados por onde passa a dupla de soldados. Retratados como se estivessem posando para uma pintura renascentista, os corpos jogados no campo de batalha jamais escapam das lentes de Mendes, especialmente os mais putrefatos, esburacados e tomados por moscas. Tudo ali está posicionado de forma quase teatral para evocar de forma “realista” a sensação insalubre e desesperadora de estar numa Terra de Ninguém. E boa parte da diversão e do entretenimento oferecidos por 1917 está em observar por quais partes dos espaços concebidos por Gassner, a câmera operada por Deakins vai passar no momento seguinte.

E aí está o problema, não é? Frente a uma obra tão vazia, a atenção se volta para a diversão e o entretenimento que podem ser extraídos dos feitos técnicos. Porém, essas são reações incoerentes com a lógica narrativa de um filme que claramente se propõe a mostrar os horrores da guerra e sua dimensão humana - afinal, se o plano-sequência tem algum propósito artístico e narrativo, é o de ilustrar a dimensão em escala humana da jornada percorrida por Schofield e Blake de uma ponta a outra do fronte.

Portanto, não é difícil sair da sala de cinema com o sentimento de ter-se engajado num épico de guerra empolgante, seja porque os cenários de Gassner impressionam e chocam, ou porque os efeitos visuais e sonoros transportam para a agonia das trincheiras, assim como a trilha sonora de Thomas Newman (habitual colaborador de Sam Mendes) também aponta com eficiência os momentos mais tensos e os mais épicos, como aquele que acompanha Schofield cruzando às pressas um campo de batalha bem no meio de um ataque do exército britânico - e que remete à cena icônica e bastante similar de Glória Feita de Sangue. O problema é que, apesar de ter sido realizado lá em 1957, com todas as limitações técnicas da época, esse filme de Stanley Kubrick que é referenciado aqui, apenas nesse trecho de mais ou menos três minutos que citei, continua sendo um momento aterrador ao conseguir dimensionar para o público a quantidade de vidas envolvidas e desperdiçadas numa guerra. Enquanto 1917, em toda sua duração, não consegue desenvolver sequer um de seus protagonistas.

Nota: 5/10


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