Márcio Picoli. Crítico de cinema e editor-chefe do Cine Eterno, também dirigiu o curta AGENTE, seu primeiro trabalho como realizador. Atualmente dedica-se a finalização de seu primeiro longa-metragem, ainda sem previsão de lançamento.
Aquarius: resistência e memória
Quando analisamos boa parte do eleitorado do #EleNão, podemos notar diversas e assustadoras semelhanças que flertam com fascismo e, principalmente, com o negacionismo. Várias vezes escutamos de “bolsominions" frases como: “a ditadura não existiu”; “bandido bom é bandido morto”; “cidadão de bem não tem medo de policial”… Sem dúvida, dá para escrever um livro só com as pérolas desses cidadãos (no masculino mesmo, porque a maioria são homens brancos e héteros).
Bem, onde entra Aquarius nessa história? Não era só o filme em que a Sônia Braga não queria sair do apartamento? Bem, aí entramos no porque o segundo longa de Kleber Mendonça Filho se tornou um clássico instantâneo: as camadas. De fato, um espectador médio vai encontrar na narrativa algo simples como a senhora que não quer deixar o apartamento, porém ao adentrarmos nas minúcias do roteiro, chegaremos a conclusão de que Aquarius é sobre os conflitos de se ter uma opinião diversa do senso comum e da dificuldade de ser respeitado por isso.
O #EleNão é uma pessoa que se diz defensor de maiorias as quais as minorias devem se curvar, ele não aceita opiniões diversas e quando é confrontado, usa o ódio para responder. No filme, vemos a personagem Clara (Sônia Braga) o tempo todo batendo na tecla de que não quer vender o apartamento, ela está feliz ali, é o lugar das lembranças mais importantes de sua vida, a despeito de todos ao seu redor frisarem que ela deva se mudar para um lugar “mais seguro” e moderno. O personagem Diego (Humberto Carrão) é tão mimado - assim como o coiso - que ao escutar que alguém pensa de forma diferente a dele, responde com ódio, dissimulação e ataques pessoais.
Clara, resiste a todos os assédios da empresa e sim, representa o que nós temos de fazer nesse momento: resistir. Em um dos diálogos a personagem brada que a forma com que é tratada pelas pessoas é como se ela fosse louca, só por querer respeitar uma vontade própria e é exatamente isso que deve ser feito em conjunturas como as que estamos inseridos. É mais que necessário seguir com os nossos princípios e dizer não a discursos fáceis e perversos como do #EleNão. E assim como na película, devemos nos preparar para os contra-ataques, sempre tendo em mente a frase célebre de Clara: “Eu sobrevivi a um câncer (…) e hoje em dia, eu resolvi uma coisa: eu prefiro dar um câncer, em vez de ter um”. Se for pra ser assim, nós seremos os responsáveis pelo câncer do coiso e de pessoas que pensam como ele. Nós seremos a resistência a essas “maiorias" fascistas, homofóbicas, transfóbicas e misóginas.
Em outra passagem do filme, vemos um dos sobrinhos de Clara indo até o apartamento da tia para pegar algumas fotos de quando era criança, em seguida, ele está manipulando uma dessas imagens no celular de forma a alterar o tom da pele do bebê. Temos aí um exemplo de negacionismo histórico. O personagem quer negar suas origens; quer negar o óbvio que está estampado. Algo muito semelhante ao que vemos no discurso do #EleNão. Enquanto ele diz que não há homofobia, uma pessoa LGBTQ+ morre a cada 19h; enquanto ele diz que não há machismo, as mulheres recebem menos que homens em todos cargos; enquanto ele diz que não houve ditadura militar, a comissão da verdade revela mais de 400 mortes e desaparecidos políticos durante o período.
Por fim, Aquarius é um filme de respeito à memória - algo que nossa sociedade insiste em desvalorizar. A protagonista reconhece que o local onde mora e os objetos que possui não detêm valor financeiro, uma vez que fazem parte de suas vivências. Podem dar a ela uma cobertura de luxo, mas não vai ser o local em que os filhos dela nasceram. Podem a entregar um link para download das musicas do John Lennon, mas não será o Vinil que ela comprou no sebo em Porto Alegre. Para pessoas como o #EleNão, a memória representa uma ameaça, tendo em vista que a história é implacável com figuras de sua semelhança, logo não interessa o passado, mas sim, o futuro e em nome do moderno e do novo, erros pretéritos são camuflados; objetos perdem o valor sentimental; ideias e ideologias são deliberadamente apagadas e, especialmente, figuras antigas e perigosas são revestidas com olhar de novidade.
Um pessoa como #EleNão representa um risco a nossa democracia, à arte, à humanidade. Pessoas como ele são combatidas não com ódio e violência, mas com amor, memória e respeito. Isso é o que nos diferencia e é com isso que vamos derrotá-lo.
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Entenda o que é, porque existe e leia as outras edições do projeto O Cinema Diz: #EleNão, em que convidei várias pessoas para escolher e escrever sobre um filme que converse com a nossa situação política, no intuito de refletir e ilustrar os riscos que estamos correndo.
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