segunda-feira, 15 de outubro de 2018

CRÍTICA: NASCE UMA ESTRELA


Por algum motivo, a história da jovem talentosa descoberta por um artista alcoólatra em decadência, fascinou gerações desde que surgiu pela primeira vez em 1937 estrelada por Janet Gaynor e Fredric March. Tanto é que o filme foi premiado justamente com o Oscar de Melhor Roteiro Original. Desde então, Nasce Uma Estrela já ganhou outras três versões para o Cinema: a de 1954, em que a protagonista foi vivida pela icônica Judy Garland; A de 1976, que deu o Oscar de Melhor Canção Original para Barbra Streisand; E agora essa de 2018, que traz a cantora Lady Gaga como a estrela do título.



De um ponto de vista de mercado, na verdade, não é difícil entender porque o roteiro de Nasce Uma Estrela tem sido sistematicamente refilmado há tantas décadas. Trata-se de uma história simples, com elementos universais, comovente e que, acima de tudo, oferece diversas oportunidades de prêmio - é o tipo de roteiro que dá espaço aos atores, ao diretor, ao fotógrafo, ao figurinista, ao compositor e os músicos, e isso sem partir para uma escala megalomaníaca de produção, ou seja custando muito pouco. Ao todo, já foram 15 indicações e 3 vitórias no Oscar, além de já ter rolado indicação ao Grammy e até 7 Globos de Ouro. Mantendo sempre mais ou menos a mesma história:


Jackson Maine (Bradley Cooper) é um músico famoso e entregue ao alcoolismo. Certo dia, depois de um show, ele entra num bar e conhece a jovem e desconhecida cantora chamada Ally (Gaga), por quem imediatamente se apaixona. Inebriado pelo talento da moça, ele usa a influência que ainda lhe resta para lançar a carreira da garota. Entretanto, paralelo ao estrelato de Ally, vem a decadência de Maine, que começa a refletir na imagem pública de sua amada, que ainda luta para construir uma imagem na sua recém alcançada fama.


Dirigido e co-escrito pelo próprio Bradley Cooper, a nova refilmagem de Nasce Uma Estrela não foge demais aos elementos mais memoráveis das outras versões. Temos aqui de volta o produtor que só pensa em dinheiro, a cena do vexame durante uma importante premiação e, num toque mais delicado, o derradeiro diálogo trocado pelo casal: “Deixe-me te ver uma última vez”. Entretanto, mesmo sem as versões anteriores, o romance conturbado entre um casal de músicos já virou uma espécie de subgênero do drama no cinema americano. Só para citar alguns exemplos, essa ideia já deu origem aos magistrais Apenas Uma Vez, Alabama Monroe e Coração Louco. Por isso é um alívio notar que Cooper, em sua estreia na cadeira de direção, faz um esforço honesto para conferir certo frescor à narrativa


Contando com o talentoso diretor de fotografia Matthew Libatique (que é parceiro fiel de Darren Aronofsky), Cooper estabelece já de cara uma lógica visual simples, mas não menos interessante por isso. Enquanto se foca em Jackson, como na cena de abertura, a câmera é usada na mão, tremida, com enquadramentos fechados, de baixa profundidade de campo e muita poluição visual, principalmente através do uso de flares - que são aquelas manchas de luz na lente da câmera. Isso traduz bem o estado quase constante de embriaguez do cantor. De outra forma, quando Jackson enxerga Ally pela primeira vez, cantando em um bar, a câmera estabiliza em um quadro fixo, e a partir daí assume movimentos fluidos que seguem a performance da moça. Menos sutil é a escolha que Cooper e Libatique fazem de colocar Gaga para cantar a já batida La Vie en Rose sob uma iluminação rosa e, claro, com uma rosa na boca.


A lógica se repete ao longo do filme, e mesmo o uso das cores é trazido de volta pontualmente. O vermelho neon, por exemplo, torna-se um sinal dos exageros da embriaguez de Jackson, e até Ally, quando momentaneamente se junta ao companheiro nos seus hábitos autodestrutivos, é vista sob uma luz dessa tonalidade. Mas Cooper e Libatique também conseguem extrair se não força, ao menos significado de outros instantes em particular. Gosto, por exemplo, do modo como um certo personagem, já nos minutos iniciais, é enquadrado ao lado da imagem de várias cordas de forca, sugerindo seu trágico desfecho, enquanto em outro instante, Jackson é colocado como uma figura pequena contra o rosto gigante de Ally num telão atrás dele, já implicando que a moça iria tornar-se mais famosa e reconhecida do que ele. De forma similar, bem mais adiante, a câmera fecha no rosto de Jackson enquanto este observa o ensaio de Ally, vista através de um espelho fora de foco e com a luz super-exposta que deixa as formas nele distorcidas, quase alienígenas, o que traduz perfeitamente o modo distante e disforme com que o cantor enxerga o mundo ao seu redor quando não está sóbrio.


Claro que, para além de recursos narrativos e estilísticos, Nasce Uma Estrela é o tipo de projeto feito para dar palco a seus atores. E se Lady Gaga consegue vencer as sobrancelhas e os cantos da boca praticamente paralisados pelo botox e entregar a energia simultaneamente bruta e delicada de Ally, Bradley Cooper já enfrenta um desafio maior em Jackson. E acho particularmente admirável como o ator consegue, além de dirigir o projeto, também conceber um personagem que jamais causa a repulsa do espectador ou deixa de soar genuinamente apaixonado por Ally, apesar do comportamento e do problema com a bebida. Não duvido que ambos cheguem bem cotados na temporada de premiação, embora eu torça por algum reconhecimento a Sam Elliot como ator coadjuvante, que vive de forma absolutamente comovente Bobby, o irmão de Jackson.


Gaga, entretanto, tem mais chances de brilhar na área musical. Nasce Uma Estrela é embalado por uma série de boas canções que, dentre outros, também são de sua autoria. Dona de uma voz potente e límpida, a cantora e atriz usa de seu talento mais reconhecido para tornar verossímil o mais importante dos elementos da trama: convencer o espectador de que aquela moça é singular de uma maneira que justifique seu sucesso repentino. Apesar disso tudo, é bem verdade que Cooper se sabota um pouco ao final ao criar um desfecho apelativo que praticamente implora ao espectador que chore - não há sutileza alguma num certo corte seco que diretor opta por fazer no ápice da canção que encerra o filme. E o plano final quebrando a quarta parede parece o ato derradeiro de desespero do projeto, fugindo de qualquer lógica estabelecida antes. Muito pelo contrário, soa como um desafio, como se Gaga olhasse para os membros da Academia e perguntasse: “E aí? Vai rolar esse careca dourado aí ou o quê?”. Um deslize, entretanto, não mais do que isso.


Nota: 8/10

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