quarta-feira, 17 de outubro de 2018

CRÍTICA: O PRIMEIRO HOMEM


Acho que Damien Chazelle tem uma lealdade em relação à Música maior do que ao Cinema em si. Vindo dos excelentes Whiplash e La La Land, o até então mais jovem cineasta a ter ganho um Oscar de Melhor Direção certamente se mostrou confortável explorando a temática musical, enquanto também procurou expor a sua paixão pela Sétima Arte através da estética, do estilo e de escolhas específicas cujos méritos podemos debater. A coisa é que neste O Primeiro Homem, atento a fatos históricos da Corrida Espacial e distante de um cenário habitado por compositores e músicos, Chazelle ainda assim faz a escolha curiosa de nos levar para esse universo de matemáticos e engenheiros pautando sua narrativa pela música e sonorização, muito mais do que pela cinematografia. E funciona, se não por coerência ao tema, no mínimo por apresentar um roteiro tão técnico em uma embalagem que encanta por si só.



Abrindo a projeção de forma “muda”, mas nada silenciosa, o filme já nos mergulha na subjetividade do astronauta Neil Armstrong (Ryan Gosling), então um piloto de teste, durante um voo experimental, anos antes do pouso na Lua, arco no qual o longa se concentra. Seguindo o recurso utilizado por Christopher Nolan em Interestelar para conferir verossimilhança às manobras aéreas e espaciais, Chazelle também opta por colocar sua câmera colada à estrutura dos veículos, ilustrando de maneira eficiente a força violenta da aerodinâmica agindo sobre a superfície dos mesmos. Sem jamais cortar para um plano geral da aeronave no céu, o cineasta nos prende à sensação do protagonista cortando disso apenas para o interior da cabine em planos fechadíssimos, e alternando o som entre o ensurdecedor rugido do vento do lado de fora e a audição abafada de dentro do capacete, dominada pela respiração que denota o espaço apertado e os poucos recursos de ação do piloto.


Pela primeira vez longe do roteiro de um filme que conta com a sua direção, Chazelle dirige aqui o texto de Josh Singer, que está se especializando em adaptar fatos históricos para as telonas, depois já de ter assinado também Spotlight e The Post. Longe da secura narrativa de um e da energia do outro, o diretor prefere aqui algo bem mais intimista e contemplativo. Mesmo depois de acabar a cena inicial no avião de teste, por exemplo, ele continua investindo em enquadramentos fechados e com a câmera na mão que vão permear todo o projeto, sempre levando o espectador a observar com uma proximidade indiscriminada as expressões e reações dos seus personagens. Às vezes o cineasta até opta por abrir um pouco mais o enquadramento, como faz no começo do filme para mostrar uma cama vazia no canto do plano, fazendo pesar a ausência da pessoa que costumava dormir ali. De outra forma, muito antes de o assunto “pouso na Lua” ser mencionado na trama, Chazelle já enfoca o luar pairando sobre a jornada de Neil e sua família, como um arauto do que estava por vir.


É verdade que por vezes o diretor é um pouco autoindulgente, especialmente no primeiro ato, quando deixa que alguns planos fiquem por tempo demais em tela, confundindo desenvolvimento de personagem com uma simples e vazia contemplação do sofrimento alheio. Não chega a prejudicar a narrativa, e é até mesmo uma escolha compensada por cortes delicados como aquele que pula de uma interação carinhosa entre duas pessoas para o plano do caixão de uma delas descendo para a cova, que é perfeito exaltando a melancolia frente à inevitabilidade do acontecimento.


Porém, se a fotografia de Linus Sandgren é eficiente nesses aspectos, ele também faz algumas escolhas no mínimo curiosas ao adotar uma estética mais próxima dos anos 1970 do que dos anos 1960, que é quando o filme se passa. Aliás, lembro de ter notado o trabalho de Sandgren justamente por sua recriação fiel da estética setentista no ótimo Guerra dos Sexos. E aqui o diretor de fotografia se repete, desde a paleta dessaturada, passando pelo recurso do zoom até a película granulada. A câmera na mão já é uma marca mais adequada ao período, pois remete o uso das primeiras câmeras caseiras. Claro que, nada disso importa a um público médio, se a estética remete a “algo antigo”, isso já é o bastante para dizer que ela cumpriu seu papel. Estou sendo chato. Até porque, aqui e ali, Sandgren e Chazelle criam momentos admiráveis que em nada dependem do estilo, como num plano mais aberto que, ainda assim, fecha Neil dentro do enquadramento de uma janela na cozinha, ou outro que mostra o rosto do astronauta, prestes a entrar num dos foguetes, em que o reflexo do vidro do capacete espelha as longas lâmpadas fluorescentes sobre a sua expressão, enfatizando seu cenho fechado.


Aliás, O Primeiro Homem é um prato cheio aos detratores de Ryan Gosling. Uma vez que a câmera não desgruda do seu cangote, é possível acompanhar até mesmo os pequenos detalhes de suas expressões. Porém, assim como fiz em Blade Runner 2049, vou defender a "inexpressividade" do ator e ressaltar que novamente é uma opção dele de investir numa interpretação contida. Se no filme de Denis Villeneuve eu tinha a justificativa de que se tratava de um androide, aqui eu evoco a introspecção natural de Neil Armstrong, que antes de tudo, é um pai enlutado que foca suas energias nos desafios técnicos para fugir da dor de ter que lidar com a perda, algo que o filme faz questão de pontuar a todo instante - o pragmatismo do homem fica óbvio quando ele apanha num movimento mecânico uma caneta que flutua sob o efeito da gravidade zero, ignorando a beleza poética e incomum do fenômeno (fazendo um contraponto à cena de 2001: Uma Odisseia no Espaço, em que Kubrick utilizou exatamente uma caneta flutuando em gravidade zero para ressaltar a poesia de uma viagem ao espaço). São detalhes que já sugerem desde o início a visão matemática e objetiva que o filme pretende conferir a Neil. Já Claire Foy, como sua esposa Janet, tem uma presença relevante ao levar o espectador para o lado das famílias e, especialmente, das mães deixadas de lado por esses “grandes homens” em busca do sucesso em realizar as suas façanhas históricas.


E Chazelle consegue fluir muito bem entre esses núcleos e mesmo entre os focos dentro deles (Neil se divide entre o trabalho e os problemas com a família, por exemplo), usando para isso, como citei no início do texto, a sonorização, em especial a música. Durante o clímax do filme, inclusive, quando a nulidade de sons devido ao vácuo seria esperada, o cineasta faz uma opção semelhante a de Alfonso Cuarón em Gravidade, e substitui o silêncio absoluto pela trilha, aqui assinada por Justin Hurwitz - o mesmo oscarizado pela trilha de La La Land. E Hurwitz alterna bastante entre a delicadeza flautada que adentra uma cena entre Neil e o amigo Ed (Jason Clarke), sabendo a hora de sair de cena quando a conversa toma rumos mais pessoais, e a ostensividade de uma conquista da envergadura que tem o pouso na Lua. Não somente, Chazelle estrutura seu filme em cortes sonoros que conversam com a urgência ou a contemplação das imagens. Há momentos em que não há outro protagonista que não o som do filme - o que me leva a pensar que ele deve ser um dos favoritos na corrida pelos prêmios da categoria.


Nota: 8/10

Nenhum comentário:

Postar um comentário