“Diário da pesquisa de campo.
Sr. Billie, lhe reporto agora minhas conclusões sobre o Fogo
e a Água.
Inserido em um ambiente hostil,
tive durante muito tempo que me esconder. Selvagens andavam por essas montanhas
perscrutando por carne humana, e a minha, estranha para eles, pareceria
tentadora de se devorar. Os cantos escuros entre as pedras duras logo se
tornaram aconchegantes, o frio se fez um amigo inseparável, e a fome, uma
amante fiel. Quase sem pele nas pontas dos dedos, me forcei a escalar cada
íngreme escarpada, e a descer com os pés calejados cada barranco coberto de
afiadas pedrinhas negras. Canelas deixaram de ser parte das pernas e
tornaram-se escudos. Os lábios abriram-se em fendas e a profundidade
das minha olheiras poderiam ser medidas em braças. Mas os dias avançavam sem
que minhas buscas se mostrassem frutíferas.
Foi quando estava tão cinza e duro
como qualquer uma das pedras a ponto de poder ser confundido com uma delas, é que
cheguei aos objetos de meu estudo. Seria até mesmo engraçado se algum selvagem cruzasse comigo então, adoraria ver sua reação ao flagrar uma das rochas do
local parada em pé a lhe sorrir e falar. Para dizer a verdade, Billie, poderia estar alucinando, mas eu mesmo tenho a impressão de que olhos me seguiram por
entre aquelas montanhas durante todo o tempo, e mais de uma vez jurei ter visto pares deles desaparecerem antes que eu pudesse focá-los entre uma pedra e outra. Às
vezes, ouvia – te juro!- os rochedos conversarem aos sussurros, principalmente
à noite, quando eu apenas fechava os olhos e fingia que dormia. Quanto cinza e
quanta solidez. Qual não foi o meu prazer ao finalmente descobrir o Fogo. Sim,
este eu descobri. A água eu encontrei. E esta é uma diferença crucial, meu caro
Sr. B. Eu fagulhei aquele primeiro fogo, o aticei com paciência e o vi se
tornar uma labareda alta como uma casa. O calor me aqueceu, me iluminou a
escuridão e eventualmente me queimou os dedos. Releve, eu ainda era
inexperiente com o tal elemento. Pedras tinham sido tudo o que eu tinha visto
até então.
Maravilhei-me dias com o Fogo. Brincando
de sombras no paredão rochoso mais próximo. O som das chamas urdia alto demais
para eu ouvir se alguma das minhas velhas amigas cinzentas ainda sussurrava à
noite. Tudo era atrativo demais. Sua luz bruxuleante, os movimentos rápidos e
sensuais de suas labaredas, o modo como crepitava e lançava grossas fagulhas
para os arredores e o calor intenso que exalava. O calor! Ah Billie,
você deveria senti-lo uma vez na vida, todos deveriam. A energia pura e bruta,
indomada, que emanava de seu epicentro abraçando tudo ao seu redor, inclusive a
mim. Mas as brasas da última fogueira ainda queimavam quando então descobri a Água.
Sujo ainda da fuligem, me
aproximei de sua margem, curioso quanto aquele novo elemento. Parado em seu
lugar. Gostei primeiramente como ela reagiu a mim. Quando toquei sua
superfície, ondulou. Leve a angelicalmente. Quando mergulhei minha mão toda em
seu corpo líquido, abraçou-a por completo. E quando retirei-a, várias partes da
tal Água ainda se agarravam a ela, mantendo-a umedecida. Logo também descobri
que a Água não matinha um único formato, e me diverti observando como se adaptava
aos mais diversos receptáculos. Ela me matava a sede, limpava o corpo e servia
de espelho quando a deixava se acalmar o suficiente para que sua superfície
pudesse refletir a minha imagem. Em certos ambientes, ela estava sempre em
movimento, agitada, correndo e crispando-se espumosamente contra as margens.
Noutros, repousava quase que mortuariamente. Mas era naqueles onde ela ondulava de forma natural e alegre em que me sentia melhor. Deixava-me boiar e com o tempo
passei a explorar suas profundezas. Quantos segredos não poderiam lá haver
Billie? É bem verdade que para isso, eu expunha todo o meu ser ao seu toque,
mas de alguma forma o fato não me incomodava, gostava de sentir na perna uma
corrente fria enquanto outra quente envolvia-se como uma manta em torno do
pescoço. Suas mudanças eram sutis, e quase sempre, equilibradas.
Pois bem, saído da notória Água e
sentado a sua margem com as brasas do Fogo as minhas costas, peguei meu caderno
de anotações e pus o que transcrevo agora em suas páginas:
‘O Fogo eu descobri. A Água eu encontrei. O Fogo aquece, ilumina,
espanta as más vozes das pedras, e os selvagens o temem. A Água é límpida, é
maleável, mata a cede e purifica a pele, mas os selvagens precisam dela também, embora
claramente desconheçam sua verdadeira natureza, insistem em aproximarem-se da
borda as pressas, bebericar um pouco de seu conteúdo e então deixá-la tão logo
sua cede pareça satisfeita. O Fogo é difícil de manejar, em grandes
quantidades, é perigoso e descontrolado. Incisivo, toque-o -basta na verdade
chegar perto de mais- e ele te queima. A Água também se mostra difícil em seu
manejo. E tal qual o Fogo, em grande quantia pode ser letal. Não é possível mergulhar em águas rasas, as profundas são mais atrativas, mas estas mesmas podem te dragar eternamente
para o fundo, fazendo de você mais um dos segredos a serem descobertos em suas entranhas.
O Fogo corrói a pele. A Água a murcha. Ambos necessitam obrigatoriamente de
oxigênio para existir. O Fogo produz fumaça, que assim como a Água, teima em
entrar pelo nariz para fazê-lo arder. O Fogo aquece a Água. A Água controla o
Fogo. O Fogo borbulha a Água e a evapora. A Água apaga o Fogo e o impede que
venha a renascer.’
Perdão Sr Billie, tenho que finalizar o
relatório por aqui, começou a chover.”
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Leia também os outros dois contos que escrevi, publicados aqui:
"Bundas em Geral"
http://classedecinema.blogspot.com.br/2013/07/bundas-em-geral.html
"Vivi e Matei"
http://classedecinema.blogspot.com.br/2013/12/vivi-e-matei.html